Depois de muito e mais de um ano sem o evento, o Met Gala aconteceu na noite desta segunda-feira (13). O baile e a exibição tiveram a moda norte-americana como tema – uma escolha que, apesar de vaga, prometia diversos elementos cabíveis para interpretação por parte dos designers e stylists.
De todos os temas já abordados pelo evento, esse não se mostrava tão complexo quanto seu antecessor (Camp) ou controverso como o tema de 2018 acerca da religião católica. Ainda assim, como de costume, convidados e seus times falharam para seguir o tema proposto.
Não é segredo que a moda norte-americana, assim como a cultura e história estadunidense — e de boa parte da América — foi construída por mãos pretas. Mas onde elas estavam na noite de segunda-feira em um evento extremamente exclusivo da sociedade estadunidense?
Sim, o evento contou com vestidos assinados por designers pretos como Christopher John Rogers (usado pela autora Eva Chen e pela atriz Jordan Alexander) e Theophilio (usado pelo modelo Alton Mason), porém em sua minoria. Também contou com referência à grandes figuras negras norte-americanas como Aretha Franklin (vestido usado por Jennifer Hudson) e Josephine Baker (vestido da Dior usado por Yara Shahidi e da Oscar de la Renta usado por Anok Yai).
Em um ano onde houve a estreia do primeiro designer negro-norte americano na alta-costura – Pyer Moss, que apresentou sua coleção couture recheada de críticas sociais e políticas – a fundação da moda norte-americana parece ter sido mais uma vez apagada. Ao invés disso, houve a típica concentração de grandes designers brancos e suas marcas multibilionárias.
A indústria da moda estadunidense foi semeada por mãos pretas. Ainda nos tempos de escravidão, eram os afro-americanos que costuravam vestidos para famílias da elite. Elizabeth Keckley, afro-americana e ex-escrava, é apenas um dos grandes exemplos dessas personalidades. Nos anos de 1860, Keckley era a costureira de Mary Todd Lincoln — esposa do então presidente dos Estados Unidos Abraham Lincoln. Depois de comprar sua liberdade e deixar St. Louis, Missouri, ela se estabeleceu em Washington, DC, com uma loja com 20 ajudantes e atuou como costureira das mulheres mais influentes daquele momento. Apesar de mais citada, é importante lembrar que diversos designers negros do período não foram creditados pelos seus trabalhos.
Nos anos de 1940, ainda com as leis de segregação racial no país, designers pretos estavam por trás do figurino de importantes figuras culturais. Como por exemplo Zelda Wynn Valdes, que foi responsável por desenhar as roupas da icônica cantora de jazz Ella Fitzgerald, da cantora Maria Cole, da atriz Dorothy Dandridge, da cantora Eartha Kitt e da primeira estrela de ópera estadunidense Marian Anderson. Ainda na mesma época, em Nova Iorque, há a presença de Ruby Bailey, conhecida em Harlem por seus designs repletos de cores e estampas.
E claro, é impossível não mencionar Ann Lowe, a primeira designer afro-americana a tomar mais reconhecimento. Entre os anos de 1920 e 1960, Lowe vestiu mulheres da alta sociedade e é responsável por um dos vestidos mais notórios na história da moda estadunidense: o vestido de casamento de Jackie Kennedy. Ainda assim, na época, Lowe não recebeu crédito pelo seu trabalho por conta de sua etnia. Em 1968, a designer abriu sua loja na Madison Avenue, Nova Iorque, e hoje seus designs são exibidos em museus.
Contemporâneo de Kelly, Willi Smith é provavelmente um dos designers mais revolucionários e também mais esquecidos do cenário da moda, o inventor do streetwear. Na década de 1970, Smith foi o responsável por misturar elementos de roupas atléticas com alfaiataria, criando peças que eram feitas para serem usadas. O designer tinha a proposta da moda tangível, para todos. Seus designs ganharam fama e ele rapidamente virou uma espécie de ícone dentro da comunidade afro-americana.
Street couture, como ficou conhecido seu legado, tirava inspiração do mundano, do comum. De pessoas reais e dos subúrbios a fim de servir os mesmos. WilliWear, marca do designer com sua parceira de negócios Laurie Mallet, obteve sucesso instantâneo com sua proposta plural. Apesar de precursor do streetwear que conhecemos hoje, Smith é raramente lembrado.
Conhecido como um dos pioneiros, Stephen Burrows — mais um contemporâneo de Patrick Kelly e Willi Smith, notável pelos seus designs repletos de cores vibrantes – é mais um dos designers que marcam a moda estadunidense. Em 1973, foi um dos cinco designers a participar do desfile Batalha de Versailles, uma competição entre designers franceses e norte-americanos para fins beneficentes.
Ainda nos anos de 1970, Burrows foi um dos responsáveis por consolidar a estética que mais tarde seria associada com o início da década — como cores fortes e formas geométricas. Durante sua carreira (que se estende até hoje), quebrou barreiras como o primeiro norte-americano a ganhar prêmios de moda, e se tornou um dos favoritos das celebridades.
Nos anos de 1980, Dapper Dan, estilista nova-iorquino, definiu a cultura do hiphop com o uso da logomania e silhuetas que marcaram a década. Se Galliano fez uso das logos nos anos de 1990, foi Dan que deu início à tendência e redefiniu a estética urbana quando as gigantes do luxo não prestavam atenção para aquilo. Seus designs viraram uniforme da comunidade negra norte-americana dentro do cenário musical, vestindo nomes ilustres como Eric B. & Rakim e Mike Tyson.
Durante sua glória nos anos 80, se apropriou de logos de gigantes casas de luxo como Louis Vuitton, Gucci e Versace. A apropriação resultou em uma série de processos na década de 1990 que fez com que o designer encerrasse operações. Uma de suas peças mais famosas foi uma jaqueta bufante, de pele, com a estampa clássica da Louis Vuitton nas mangas — ítem que reapareceu na coleção Resort de 2018 da Gucci, dessa vez com a logo da maison italiana. Anos depois, nos anos 2000, sua influência ainda é marcada no estilo Y2K.
Hoje a lista de designers norte-americanos com grande notoriedade se expande: Christopher John Rogers, LaQuan Smith, Telfar Clements, Kerby Jean-Raymond, Victor Glemaud, Kanye West e Virgil Abloh são apenas alguns nomes que continuam quebrando as barreiras da indústria da moda e apresentam coleções que ultrapassam as expectativas de criatividade e manufatura. A NYFW que se encerrou neste domingo (12) foi apenas mais um atestado de que os designers pretos norte-americanos são os que trazem algo interessante para o cenário da moda estadunidense. Mesmo assim, onde estavam esses criadores no tapete vermelho do Met Gala?
Sem referências daqueles que construíram a moda norte-americana ou os que a mantém interessante atualmente, o evento da moda mais esperado no ano caiu como apenas mais um tapete vermelho hollywoodiano. A oportunidade de creditar designers de cor que fizeram a moda estadunidense — ou até mesmo grandes ícones da moda como Diana Ross, Prince e muitos outros — foi perdida mas já era esperada.
Os convidados não são obrigados a seguir o tema, e realmente poucos seguiram. Em sua grande maioria, os vestidos não referenciavam nada da história da moda estadunidense ou do país em geral. Trajes bonitos, sem sombra de dúvida, mas que fugiam do tema relativamente fácil proposto pelos presidentes do evento. A noite foi agraciada com momentos em Oscar de la Renta, mas assombrada por Saint Laurent, Valentino e Balenciaga — marcas que seriam perfeitas em qualquer outro evento ou qualquer outro tema, ou até mesmo se simplesmente adotassem elementos da cultura norte-americana.
A presença de marcas, mesmo gigantes, que se destacaram na indústria estadunidense foi escassa: não houve Marc Jacobs, pouquíssimos Ralph Laurens, Calvin Kleins e até mesmo Michael Kors. Isso sem mencionar a (quase) total falta de designs inspirados por Halstons e Bob Mackies. Alguns trajes pareciam até mesmo pertencer a tapetes vermelhos passados.
Com uma cultura rica e recheada de elementos marcantes, do country até Old Hollywood e subculturas de streetstyle, é decepcionante assistir o descarte do potencial de uma noite tão aguardada.