Entre os tecidos transparentes incluindo bordados em proporções minis e ousadas observados nas coleções durante a temporada de Primavera/Verão 2022, apresentada no mês de setembro deste ano, foi possível observar outra qualidade estética que indiscutivelmente serviu de inspiração evidente para estilistas, algo não relacionado às correntes de otimismo pós-pandêmico e a ansiedade em voltar para grandes eventos — na verdade justamente se opõe a essa característica tão presente na indústria atual: a estética que se assemelha ao horror, que tira inspiração do tema central, e também em filmes do gênero que marcaram um espaço importante na cultura popular.

Primeiro é necessário entender que a formação do conceito de belo por trás de uma obra de arte nunca foi fácil. Na verdade, entender o que a beleza significa é um dos grandes assuntos e temas da filosofia, de Platão até Immanuel Kant. O autor Paulo Euron em seu livro “Estética, Teoria e Interpretação da Obra Literária” explica que os povos da Grécia e da Roma antigas não tinham uma definição para o que chamamos de “belas-artes”, na realidade a tentativa de definir um termo como “beleza”, “percepção” ou “verdade” relacionado a diferentes obras de arte é um esforço moderno.
“Diante de uma pintura, ou de um edifício hoje considerado uma obra de arte, um grego ou romano antigo só veria uma pintura, ou um edifício, ou seja, o resultado da atividade de um artesão. Na Grécia antiga havia obras de arte, e havia a experiência da obra de arte, mas essa experiência não estava relacionada a categorias como “beleza” ou “qualidade estética”. “
Entendendo isso, durante anos estudamos como um tipo de produção artística consegue inspirar outros artistas de ramos e áreas diferentes a produzirem sua própria visão criativa. O belo das obras na antiguidade clássica sempre foi uma mística entre beleza e arte sendo ainda a referência ocidental de beleza, inspirando inúmeros trabalhos até o presente. Agora que é possível entender uma linha clara entre a relação da qualidade estética e a inspiração criativa: o que acontece quando algo que é justamente a oposição do espectro da beleza tradicional inspira inúmeras visões artísticas?

Uma verdade clara da cultura contemporânea é como gêneros visuais e estéticos subversivos ao belo tradicional podem cativar um grande público, talvez por serem justamente a oposição dessa noção estética. O feriado originalmente celta que ficou internacionalmente famoso por um grande conjunto de vestimentas com referências ao conceito de terror em geral — o Halloween hoje é um dos maiores eventos tanto entre grandes celebridades (quais o público espera ansiosamente por suas fantasias) como também entre indivíduos que apenas querem uma noite temática entre amigos… O que depois de quase dois anos em casa, parece ser uma boa alternativa.
É inegável a influência do terror como um conceito completo estético na cultura pop moderna, mas é ainda mais possível observá-la nos grandes filmes de terror que deixaram sua marca na indústria do cinema inspirando fantasias e até mesmo mudando sensos estéticos do que é beleza, desde o famoso vestido preto apertado de Anjelica Huston como Morticia Addams no filme de comédia Família Addams de 1991 que virou uma grande referência da época até a maquiagem azulada da animação Noiva Cadáver de Tim Burton estreada pela primeira vez em 2005, qual este ano virou inclusive inspiração de coleção de maquiagem da marca Makeup Revolution.
Considerando que, desde a maquiagem até os figurinos, os filmes de terror conseguem ser um grande portal de inspiração visual para diferentes recriações. Conversamos com a designer de figurino Alice Alves para esclarecer um pouco se existe uma relação direta entre os figurinos dos filmes em pauta com a cultura pop:
“Existe uma ligação super direta porque é o que vai ser reproduzido dos filmes de terror e de qualquer outra categoria de filme. No Halloween as fantasias mais procuradas são sempre as de filmes, ou seja, são os figurinos que fazem sucesso e perpetuam o filme, os tornam pop. Uma boa figurinista não se forma da noite pro dia, precisa ter bagagem e experiência que vai sendo aprendida nos anos trabalhados como estagiária e depois como assistente.”

Existe um fenômeno notável de grandes designers de dentro da indústria da moda de luxo que se inspiram nos figurinos ou estéticas gerais desses filmes como inspiração primária para a criação de suas coleções, mais recentemente na última temporada de moda em setembro deste ano. Na coleção de Primavera/Verão 2022 da marca MM6 Maison Margiela entre bebidas de gin em um terraço na cidade de Milão, o designer André Breton em uma colaboração com os artistas surrealistas Leonora Carrington e Claude Cahun apresentaram uma coleção definidamente inspirada em um dos clássicos da literatura de terror que se tornou um filme sucesso e com sequência: A coisa (2017) de Stephen King.
Entre as estampas quadriculadas em referência ao figurino do palhaço e uma modelo entrando na passarela com um balão flutuante na mão, o designer deixa claro que a inspiração vem não só de uma recriação ligada aos figurinos do filme mas sim da própria trama em si.
Como foi possível perceber, a maioria se deriva de grandes filmes de terror que marcaram épocas e se tornaram populares como O Iluminado (1980), Bebê de Rosemary (1968), Laranja Mecânica (1971) entre outros. Os figurinistas, diretores e ambientações desses filmes foram especialmente utilizados para a criação dessas coleções. Nossa entrevistada explica um pouco sobre a trajetória como figurinista para executar um trabalho que marque desde do popular traçando seu caminho como referência plena em cultura pop e até mesmo se inspirando em outros filmes:
“A inspiração de cada figurinista é única porque depende da bagagem que ela traz, de quem é o diretor do filme, porque ele vai nortear a figurinista para que ela crie figurinos dentro de uma estética que ele goste, o diretor de arte também tem muitas conversas com a figurinista. E uma das várias fontes que uma figurinista utiliza para criar figurino são os próprios filmes.”
A ligação entre o terror e a moda não é um fenômeno recente, na apuração e pesquisa deste artigo foi possível perceber inúmeros exemplos de diferentes épocas da moda que bebem da mesma fonte de inspiração, desde dos vestidos rígidos e pretos da época vitoriana que até se tornaram uma grande referência de terror em geral até chegar nas coleções de Alexander McQueen — internacionalmente conhecido por seu intrínseco trabalho misturando a emoção, arte e moda. McQueen era fascinado em inspirações estéticas que causavam êxtase e desconforto dentro de coleções teatrais e com habilidade técnica.
Algumas das inspirações em cenários grotescos como sua coleção de graduação de 1992 intitulada “Jack The Ripper stalks his victims”; quando colocou um esqueleto humano na primeira fila junto com os jornalistas para a coleção de Outono/Inverno 1996 inspirada no Inferno na Divina Comédia de Dante; quando, no final do show, tinha uma mulher nua com cabeça de alien num cenário inspirado em um asilo mental vitoriano; ou finalmente quando McQueen aprendeu sobre a história de suas ancestrais que foram executadas nos julgamentos de bruxas de Salém e fez uma coleção inteira referenciando bruxas para a coleção de Outono/Inverno de 2007.
Alexander McQueen trilhou um caminho muito diferente de seus compatriotas na indústria da moda de luxo na época, ele conseguia fazer coleções completamente teatrais e experimentais serem sucessos entre críticos e consumidores — abrindo as portas para quem encontra o belo dentro de cenários e estéticas inusitadas. Alguns exemplos de coleções mais recentes que seguiram dessa fonte de inspiração são Undercover Primavera/Verão 2018 com o filme O Iluminado, Moschino Resort 2020 com o filme Pânico (1996), Gareth Pugh Primavera/Verão 2015 em bruxas e Rick Owens com o filme francês de terror Os Olhos Sem Rosto (1960).
Em suma, os tópicos de fontes de inspirações que servem para designers produzirem suas coleções são sempre muito comentados e discutidos dentro da indústria, mas a possibilidade de que os mesmos podem se inspirar em criar uma arte visual e apreciativa tomando como partida uma estética que não relacionamos com algo tradicionalmente belo ou agradável é um espectro fascinante de dentro das criações.

Uma lista de coleções que utilizam da inspiração:
Alexander McQueen Spring Summer 1995 – inspirada no filme de Alfred Hitchcock “Os Pássaros”
Alexander McQueen: primeira coleção em 1992 – A coleção de graduação ” Jack The Ripper Stalks His Victims”.
Alexander McQueen Fall Winter 1996 – inspirada por “Inferno” de Dante.
Alexander McQueen Fall Winter 1998 – Joana d’Arc e bruxas.
Alexander McQueen Fall Winter 2001 – O personagem Pennywise.
Junya Watanabe Fall Winter 2006 – O filme de 1987 Hellraiser.
Alexander McQueen Fall Winter 2007 – Bruxas.
Saint Laurent Spring Summer 2013 – Bruxas e serviu de inspiração do figurino da temporada Coven de American Horror Story.
The Blonds Fall Winter 2013 – O iluminado
Gareth Pugh Spring Summer 2015 – Bruxas
Rick Owens Fall Winter 2016 – O filme francês de terror Eyes Without a face
Calvin Klein Spring Summer 2018 – Os filmes Carrie e o bebê de Rosemary
Undercover Spring Summer 2018- O iluminado
Calvin Klein Spring Summer 2019: O filme Jaws
Comme Des Garçons Fall Winter 2019: A estética horror num plano geral.
Thom Browne Spring Summer 2019: O personagem Jason Vorhees.
Prada Fall Winter 2019: O filme e livro de Dr. Frankenstein e Família Addams.
Undercover menswear Fall Winter 2019 – O filme Laranja Mecânica.
Moschino Resort 2020 – O filme Scream.
Maison Margiela Fall 2020 Couture – A estética no geral.
MM6 Maison Margiela Spring Summer 2022 – O filme “IT” principalmente do personagem Pennywise.
