Pretty Hurts: vale tudo para atingir um ideal inatingível?

[Imagem: Reprodução Hysteria]

Procedimentos estéticos, cirurgias invasivas, mudanças drásticas… tudo para chegar perto da perfeição. Mas que perfeição é essa? Quem a definiu? Como ela é? Nesse ciclo vicioso de mudanças e afastamentos das próprias características, as pessoas se distanciam cada vez mais de si mesmas e de sua essência. Na busca incansável pela “harmonização” externa, ocorre a “desarmonização” interna.

Em um mesmo universo em que se declara que a beleza é subjetiva, também são impostos diferentes ideais no que diz respeito a ela, causando uma metamorfose infinita de busca pela perfeição. Em uma comparação de diferentes momentos da história, podemos ver como o que é visto e chamado de “belo” pelas pessoas foi transformado ao longo do tempo: na Antiguidade (VIII a.C. a V d.C.), ter pele clara, quadris largos e lábios volumosos era o desejo geral; já nas décadas de 1990 e 2000, a estética “heroin chic”, difundida pelas supermodels da época, exaltava um corpo absurdamente magro, esguio, com a pele pálida e os cabelos lisos, tudo em torno de “quanto mais reto e menor, melhor”; e nos dias de hoje, encontra-se uma busca mista – e quase obcecada – por esses dois padrões.  

[Imagem: Reprodução Não me Kahlo]

Enquanto parte da sociedade deseja estar esguia e “seca”, outros querem cada vez mais volume, mais curvas e não se importam em gastar “rios de dinheiro” e embarcar nos mais diversos tipos de processos para conseguir isso, sem pensar nos limites e nem nos possíveis riscos. Por incrível que pareça, foi durante a pandemia, em meio a uma crise sanitária mundial que tirou a vida de muitos e fragilizou a saúde de outros tantos, que houve um salto na procura pela realização de procedimentos estéticos. De acordo com a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP), a procura por intervenções não cirúrgicas aumentou 390% desde o início da pandemia e, para alguns especialistas, isso se deve pelo fato das pessoas estarem em homeoffice e, por conseguinte, com mais tempo de planejar e observar o que pretendem mudar em seu corpo. 

Porém, os motivos que levam a essa incessante busca pelo encaixe perfeito no padrão imperfeito são muito mais profundos e sérios do que um simples desejo momentâneo. Nesse sentido, a psicóloga Gabriella Pontes aponta que há uma diversidade de fatores (psicológicos, genéticos e externos) que levam à uma insatisfação em relação à própria aparência e que podem desencadear transtornos de imagem, como padrões estéticos perpetuados na sociedade e comentários de terceiros no que diz respeito à fisionomia de alguém: “Essas insatisfações surgem a partir do momento em que ensinam a gente a não gostar do nosso corpo real e vendem algumas soluções ‘mágicas’. […] O problema é que nos é passado que só vamos ser felizes se tivermos aquele determinado corpo e a chave para essa felicidade é o poder de compra desses procedimentos.” E esse comportamento obsessivo por uma transformação notável não só para os outros , mas também para a própria pessoa , a fim de que ela se sinta diferente, pode ser um alerta para o início de um sério problema: a dismorfia corporal. Ainda de acordo com a psicóloga Gabriella, a dismorfia tem causas multifatoriais que envolvem questões genéticas, contextos socioculturais, discursos difundidos e incorporados ao longo da vida e se manifesta em alguns sinais que tendem a se agravar conforme as ocorrências de “situações gatilho” no cotidiano e, em muitos casos, o distúrbio sofrido por alguém é percebido por terceiros apenas quando já se encontra em patamares mais elevados: “[…] é muito comum que aconteça na adolescência, porque é o momento em que o jovem está lidando com a mudança do próprio corpo.” Sendo assim, é importante que os sinais e mudanças de comportamento não sejam ignorados a fim de que esse comportamento prejudicial não seja transformado em um hábito, e torne mudanças relativas à aparência em condições para determinados acontecimentos da vida e estabelecimento da própria felicidade, o que a profissional chamou de “pontos âncora”, que as pessoas costumam usar para se prender e perpetuar suas inseguranças, que podem trazer como consequência a falta de autoconfiança e a dificuldade em estabelecer relacionamentos e conexões estáveis e duradouras.

Outro ponto importante a ser mencionado é na mudança no perfil dos pacientes que chegam aos consultórios médicos e no desejo que eles expressam em relação à sua imagem. De acordo com a Dra. Amanda Vilela, médica dermatologista, membro da Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD), as maiores queixas das pacientes que chegam ao consultório são relativas às rugas, ao sulco nasogeniano (o famoso “bigode chinês”) e à aparência flácida do rosto, o que costumam chamar de “derretimento da face”. Porém, segundo a especialista, atualmente, com o acesso facilitado às informações por meio da internet e das redes sociais, o foco têm sido direcionado cada vez mais à prevenção, justamente para evitar que as queixas apareçam: “As pessoas mais jovens começaram a entender a importância dos tratamentos preventivos.” Conforme explicado pela dermatologista, a partir dos 30 anos começamos a degradar a produção de nosso próprio colágeno e, por isso, é importante investir em procedimentos que promovam a melhora da qualidade da pele e estimulem uma redensificação da derme; “[…] as pessoas que se interessam por esse tipo de informação já vêm querendo tratar a qualidade da pele desde mais cedo, o que vai evitar futuras intervenções mais invasivas ou até mesmo cirúrgicas”. No entanto, a Dra. destacou que existem casos em que os pacientes desejam ir mais além, e nessas situações é necessário orientá-los quanto aos limites da naturalidade que, para ela, é primordial.

[Imagem: Reprodução RealSelf]

Ademais, essa coragem de se expor vai além da própria saúde: muitas pessoas decidem arriscar e comprometer parte de suas finanças e orçamentos para conseguir realizar as tão sonhadas intervenções. O interesse crescente pela realização destas, fez com que surgisse um novo ramo de financiamentos nas empresas: o consórcio para procedimentos estéticos. No site de uma das empresas que disponibilizam esse tipo de crédito, ainda há a equiparação de uma cirurgia plástica a “qualquer outro produto da categoria de serviços” como festas, reformas, viagens ou estudos, disponibilizando ainda a simulação de financiamentos, parcelas e juros sobre o valor final das intervenções. É claro que o planejamento orçamentário é importante nesses casos e deve, sim, se enquadrar nas condições do paciente, mas o que acende o alerta nestas situações é a banalização do tratamento e da referência a serviços que estão diretamente ligados à saúde física e, consequentemente, mental das pessoas.

[Imagem: Reprodução Metrópoles]

Nesse sentido, tal facilitação do acesso ao crédito para a realização de intervenções contribui para outro cenário que tem se tornado cada vez mais comum: o aumento de procedimentos estéticos entre os jovens que, de acordo com uma matéria publicada pelo Jornal da USP, cresceu em mais de 140%. Motivada pela insatisfação com a própria imagem, e a dificuldade de se encaixar nos – constantemente alterados – padrões difundidos nas redes sociais, a juventude contemporânea usa da coragem característica da idade para se arriscar em centros cirúrgicos e salas de clínicas. Essa mesma juventude é a que passa a adentrar o mercado de trabalho com cada vez mais fervor e, ao adquirir sua independência financeira, encontra sua oportunidade de satisfazer seus desejos momentâneos, causados por um número crescente de procedimentos disponíveis e condições financeiras favoráveis para realizá-los. 

Por fim, é importante destacar e esclarecer que a crítica não é em relação às intervenções estéticas e nem a seus adeptos, muito pelo contrário, mudanças são bem-vindas e, algumas vezes, necessárias, inclusive na área da beleza. O importante é cada um se sentir bem, feliz e confortável, e está tudo bem se, para isso, certas “alterações” queiram ser feitas. Porém, é imprescindível a lembrança de que a beleza é subjetiva e, por isso mesmo, ela se faz presente em cada um de nós da forma como somos, independentemente de qualquer padrão. Um antigo dizer popular menciona que “a beleza dói”, mas o que dói mais ainda é viver em função de tentar atingir um ideal inatingível.

Um comentário em “Pretty Hurts: vale tudo para atingir um ideal inatingível?

  1. Texto bastante esclarecedor sobre a “ditadura da beleza” que vivemos atualmente. A autora analisa de forma pormenorizada e holística todos os aspectos concernentes a esse universo, desde os impactos na saúde até os aspectos financeiros. Super indico!

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