1964: quando a música não cedeu à censura

A cultura faz parte do dia a dia das pessoas e pode servir como um refúgio da realidade, assim como pode servir como denúncia dessa mesma realidade. Exatamente por refletir diversos contextos, ela é capaz de alcançar uma audiência enorme e ter influência direta na relação do público com questões possivelmente abordadas, como na música, pelas canções.

Com um papel fundamental na comunicação, a música se tornou um dos principais veículos de delação ao assassinato da democracia no Brasil de 1964 a 1985. Foi em um ambiente de instabilidade econômica, fragilidade social e censura fervorosa, que a arte escolheu a liberdade e tomou a linha de frente em incentivo à busca dos cidadãos pela esperança e pela mobilização. Por conta de seu papel insubstituível, a intensidade do silenciamento não foi o suficiente para calar os artistas.

Brasil e as feridas do golpe de 1964

A história desse país é marcada por repressões em doses cíclicas. A Ditadura Militar que se estabeleceu com o golpe de 1964 durou 21 anos. Com a renúncia do presidente Jânio Quadros, após seu vice, João Goulart assumir, as forças militares que já programavam uma tomada de poder perceberam o ato como a oportunidade de dar o golpe. As motivações tinham relação com a polarização política entre os sistemas socioeconômicos do comunismo e capitalismo, geradas pela Guerra Fria, entre Estados Unidos e a antiga União Soviética. As forças militares eram contrárias aos ideais comunistas e acreditavam que Jango — apelido de Goulart —, por suas propostas, estaria alinhado à doutrina.

Em 1964, o primeiro presidente ditatorial, marechal Humberto Castelo Branco, assumiu o governo sem ser eleito ao cargo. Foi em seu mandato que o primeiro Ato Institucional — conhecido como AI — foi estabelecido. Esses atos foram criados para expandir determinadas ações políticas dos governantes, responsáveis por mantê-los no poder. O AI-1 foi o responsável pela abolição das eleições diretas à presidência da república, logo, a realização feriu o princípio mais importante da democracia e gerou, ainda, os populares protestos das Diretas Já anos depois.

No governo seguinte, de Costa e Silva, após outros três atos, o AI-5 tomou forma. Talvez o mais intenso, o decreto dava liberdade ao presidente da vez de ordenar recesso do Congresso Nacional, assim como sua reabertura limitada às vontades governamentais. A partir da força do ato, a censura ganhou potência e garantiu aos militares a responsabilidade de decidir o que seria liberado ao público e o que não era permitido, sem que houvesse dependência de coerência explícita. 

Com a entrada do general Emílio Médici, em 1969, os chamados “anos de chumbo” se iniciaram. Seu nome veio, principalmente, do controle rígido da cultura, o silenciamento dos meios de comunicação e a inibição dos protestos. Contrariar as ordens rendia em tortura, morte, exílio ou prisão.

Após anos e mais anos de crises econômicas, intensificação da desigualdade social, aumento expressivo da pobreza, contenção cultural e afastamento das noções de democracia, a ditadura que durou 21 anos teve fim em 1985, quando Tancredo Neves foi o primeiro presidente diretamente eleito à república, porém quem assumiu foi seu vice, José Sarney.

Canções que driblaram a censura

Como a arte foi usada ao longo da história como ferramenta política em busca da resistência a atos abusivos, durante o período ditatorial brasileiro, muitos artistas driblaram a censura com suas canções que incentivavam a esperança da população por dias melhores. Muitas delas fazem parte do cotidiano MPB atual.

Apesar de você, Chico Buarque 

Chico Buarque foi um grande inimigo da repressão do período. Com muitas das suas canções contra o contexto político, Apesar de Você (1970), a princípio, foi aprovada, mas após meses o governo percebeu a crítica e retirou de circulação.

Na letra, busca transparecer o senso de esperança que é necessário em momentos de tensão como o vivenciado no período. Tal rigidez é igualmente criticada na letra da canção.

Cálice, Chico Buarque e Gilberto Gil

Por outro lado, a música Cálice (1973), de Buarque e Gilberto Gil, foi vetada sem demora. O trecho “Pai, afasta de mim esse cálice” busca referência à frase bíblica de Jesus Cristo, porém, a palavra “cálice” soa como “cale-se” e leva ao entendimento do silêncio endossado pela censura.

O bêbado e o equilibrista, Elis Regina

A canção da grandiosa Elis Regina foi lançada em 1979. Composta por João Bosco e Aldir Blanc, é considerada o hino da Lei da Anistia, decreto estabelecido no mesmo ano após enorme mobilização popular. Ela trouxe de volta diversos brasileiro exilados pelo regime militar por desavenças políticas.

Aquele Abraço, Gilberto Gil

Um marco na música popular brasileira, Aquele Abraço (1969) está presente na memória de todos os cidadãos, sem restrição de gerações. Nos versos da canção, Gilberto Gil se despede do país quando está a caminho de seu exílio. Exalta as belezas de sua cidade, o Rio de Janeiro, e outras que conheceu durante sua vida.

Pra não dizer que não falei das flores, Geraldo Vandré

Uma das mais importantes de todas, Pra não dizer que não falei das flores (1979) representa com força o simbolismo de resistência da população — em especial dos movimentos civil e estudantil. Apesar de ter sido censurada, tornou-se o hino da resistência ao incentivar que houvesse mobilização contra o regime.

Existem muitas outras canções marcantes, como Vaca Profana (1984) e É Proibido Proibir (1988), ambas de Caetano Veloso. O movimento artístico foi incisivo, em muito, para garantir a volta à liberdade e ressaltar que essa deve ser valorizada.

Arte é política

[Imagem: Arquivo Nacional]

O papel da arte não pode estar somente ligado ao entretenimento, mas deve igualmente gerar alguma reflexão sobre o mundo. Ela é uma forma de gerar esperança e conforto, mas ao mesmo tempo, ser realista e ocasionar o máximo de desconforto possível. E, em momento sombrios, servir não como uma luz no fim do túnel, mas aquela feita no escuro e que será o lembrete constante de que há saída, sem deixar para trás a ideia do porquê ser necessário, naquele momento, buscar por uma saída.

O período ditatorial teve enorme impacto no Brasil. O passado desse país assombra gerações e mais gerações, porém recordar de quem o brasileiro foi, quando posto em uma situação de descrença, reforça a importância de que, em muito, a arte produzida pelo povo e para o povo teve impacto na queda do regime.

Hoje, não se pode ignorar o passado por medo do que aconteceu, senão compreender a importância da liberdade e da democracia para um lugar mais justo. Por isso, não há meios de negar que a música e todas as outras artes foram um combustível e tanto para que as pessoas tivessem suas vozes de volta e para que muitos outros tenham uma voz agora, que por muito tempo não puderam expressar.

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