A música é uma das mais conhecidas formas de contar histórias através da arte. Pode ser mediante canções isoladas que contenham início, meio e fim de uma breve história, ou igualmente a partir de álbuns inteiros dedicados a versar narrativas de modo particular.
Álbuns cujas faixas trazem um sentido passível de interpretações mais completas quando baseadas em uma narrativa tecida por cada uma das canções em conjunto são chamados de álbuns conceituais. Eles excedem a individualidade das composições unitárias e oferecem uma experiência distinta.
As gerações mais recentes, por sua vez, não foram habituadas culturalmente a ouvir todas as faixas de um disco. Com a quantidade massiva de informações diárias, especialmente transmitidas pelo meio digital, a produção cultural foi intensificada nas últimas duas décadas e a indústria musical recebeu uma nova forma de ser consumida: cada vez mais hits e cada vez menos álbuns ouvidos inteiramente. Assim, os álbuns conceituais perderam o brilho.
Porém, alguns artistas que fazem parte da produção cultural das novas gerações optaram pela criação de discos que possuem algo a dizer com a união de suas faixas. Conheça alguns deles:
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After Hours, The Weeknd
Para o lançamento de seu quarto álbum de estúdio, After Hours (2020), The Weeknd realizou a promoção com uma série de videoclipes que abordam a história das entrelinhas do disco. Tudo se inicia em uma noite, a envolver um terno vermelho, um carro e uma paixão. O personagem — que pode não ser realmente apenas um personagem — é inserido em uma atmosfera densa e solitária.


Apesar de todo esplendor, toda pompa e toda atenção que culmina numa ausência, a jornada do narrador desse álbum é a de uma pessoa isolada e infeliz. Seu conceito pode ser traduzido na realidade por detrás de um indivíduo que está num ambiente nocivo e destrutivo, mas que não consegue escapar. No decorrer da narrativa visual dos singles, é esclarecida sua relação com o que é ofuscado pela incandescência do glamour de uma vida melancólica e como o personagem é igualmente cegado pelo brilho.
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American Idiot, Green Day
As novas gerações foram embaladas pelas canções ambiciosas e revolucionárias dos Green Day. O álbum American Idiot (2004) se tornou um marco atemporal na carreira da banda e conquista cada vez mais públicos por sua temática atual.
O protagonista da obra é nomeado St. Jimmy. Destaca-se, ainda, a persona de Whatsername, com quem viveu uma espécie de relacionamento conturbado e adverso, pois as personalidades de ambos se repelem, porém o foco está no desenvolvimento do personagem principal.


No videoclipe de Jesus Of Suburbia (2004) e na composição, Jimmy é caracterizado como uma figura subversiva e irreverente, mas nem sempre de uma maneira positivamente revolucionária. Ser fruto de um lar desfeito reflete diretamente em sua maneira de lidar com as emoções e o levam à indisciplina.
Ao fim do clipe, como também em trechos de outras canções do álbum, é reforçado que St. Jimmy se torna um anti-herói seguido por discípulos.
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Cleopatra, The Lumineers
Os The Lumineers fizeram sucesso em 2016 com a canção Sleep On The Floor, single do álbum Cleopatra (2016). A música, apesar de contar uma história consistente no clipe, faz parte de algo maior, como as outras faixas do álbum, que são interligadas no curta The Ballad Of Cleopatra (2017), dirigido por Isaac Ravishankara.
Protagonizada pela personagem Cleopatra, uma motorista de táxi já na faixa dos ciquenta anos, a narrativa é desenrolada a partir dos estranhos passageiros que ela carrega em seu táxi durante o trabalho. Eles são memórias materializadas que levam o espectador a conhecer a vida da protagonista e como ela se desdobra através do tempo, e isso inclui os fatos concretos baseados nas decisões tomadas e os seus arrependimentos.




A narrativa se inicia ao versar sobre sua vida adulta ainda prematura, a morte do pai e sua paixão da juventude, contadas em Sleep On The Floor, logo após Cleopatra ser apresentada em sua canção homônima. Em seguida, há a introdução sua versão mais velha, na casa dos trinta, que enfrenta uma gravidez e realiza uma fuga em meio à canção Angela. Por último, o espectador é guiado à jornada final da personagem ao som de My Eyes, quando já na terceira idade, passa a residir em um asilo para idosos.
Durante a balada, são externadas todas as feridas e as lamentações da protagonista, com ênfase na carga de um remorso irremediável sobre todas as coisas que poderia ter feito, mas não fez. Ao ouvir apenas Sleep On The Floor como o principal sucesso, a história de Cleopatra é soterrada e, consigo, todas as reflexões indispensáveis.
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Electra Heart, Marina and The Diamonds
Com Electra Heart (2012), Marina criou um universo narrativo que busca criticar a representação feminina na cultura estadunidense. Para isso, a artista se utilizou de referências literárias, cinematográficas e fotográficas para apresentar Electra ao mundo.
Um dos pontos que melhor esclarece a personagem é o uso de referências que trazem, igualmente, outras personagens cuja personalidade se desvanece em detrimento de certas questões, independente de quais sejam. Elas se apegam a determinadas coisas e se moldam a elas. Muito do contexto que Marina busca inserir na construção de sua protagonista é incutido pelos arquétipos de mulher perfeita ou da tentativa de uma.


Os estereótipos são ironizados e exibem a perda da subjetividade demarcada pela massificação cultural de personalidades femininas. Uma produção desenfreada pelo mesmo modelo pré-fabricado de mulheres que abdicam de sua individualidade em prol do que é construído para parecer o ideal.
A mídia possui um papel potente e hostil na fabricação interminável dessas personalidades e, de modo cíclico, cria novos arquétipos datados que devem ser padronizados até a exaustão e, posteriormente, serão substituídos por outros.
Electra, nos clipes de Marina, se manifesta como a destruidora de lares, o ícone adolescente, o exemplo da beleza americana e a dona de casa estadunidense.
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folklore, Taylor Swift
Houve determinado costume sobre as composições de Taylor Swift quanto à narrativa autobiográfica. Com folklore (2020), a artista quebrou a sequência de álbuns estritamente particulares e se inseriu no universo de Betty, Augustine e James, jovens fictícios.
Os álbuns anteriores de Taylor, como Red (Taylor ‘s Version) (2021) e Speak Now (2010), por exemplo, decerto narram crônicas sobre sua vida, mas o interessante sobre folklore é a criação de personagens. Para apresentar a narrativa, são utilizadas três canções principais que introduzem os pontos de vista de cada indivíduo desse triângulo amoroso: o single cardigan, da perspectiva de Betty, a canção august, da perspectiva de Augustine, e, por fim, a faixa betty, da perspectiva de James.

A partir das canções, é esclarecida a trama de traição que se desenvolveu no verão. James, namorado de Betty, se envolve romanticamente com Augustine em uma noite que evolui para muitas outras. Através de Inez, uma colega de classe de Betty, a jovem descobre sobre o envolvimento de James e Augustine durante o mês de agosto, momentos antes da volta às aulas.
Em betty, James pede perdão à namorada. Clarifica o caso com Augustine durante o verão e garante que tem apenas dezessete anos e não sabe de nada. Em cardigan, por sua vez, Betty narra sua inconformidade acerca da traição de James. A canção é repleta de informações sobre seu relacionamento e enfatiza como a jovem, apesar de muito nova, sabia de tudo quando tinha a mesma idade de James a fim de ressaltar que a questão não é sua idade. Apartada, por outro lado, Augustine comunica seus sentimentos através de august, que apresenta sua paixão por James e a brevidade de seus momentos juntos, que é marcada com fatos repetitivos, ao contrário de cardigan, que se mostra rica em detalhes.
Swift articulou a estrutura e a composição das duas canções como ferramentas de colaborar com o esclarecimento dos fatos. No álbum também residem faixas que contam histórias particulares, como the last great american dinasty, e outras que podem ser articuladas em união à narrativa do triângulo, como the 1.
Uma crônica sobre amores adolescentes que elucida os arrependimentos e as visões de um passado repleto de caminhos que não foram seguidos, mas poderiam.
Os álbuns conceituais têm mensagens que, muitas vezes, não podem ser transmitidas através de canções singulares. Esse estilo possibilita a criação de capítulos ou ramificações para o desenvolvimento mais consistente das temáticas escolhidas para debate. Dessa forma, questões podem ser ampliadas e, ainda, melhor estruturadas para trazerem reflexões com caráter aprimorado de completude a quem ouve. E, apesar dos álbuns não conceituais terem um papel fundamental sobre a fabricação de análises interessantes, os álbuns conceituais produzidos pelas novas gerações e para as novas gerações possuem o potencial de gerar o amadurecimento de perspectivas e a expressão do que há de novo nos contextos contemporâneos de modo envolvente.
Seja quando a busca é pela abordagem de tópicos políticos e sobre a vida em sociedade ou quando deseja aprofundar concepções relacionadas ao amor, à solidão ou à existência sob um panorama geral, a construção feita pelas faixas têm o potencial de contar histórias que irão gerar o fator de identificação em ouvintes, além de uma relação reflexiva essencial para seu consumo consciente e esclarecedor.