A moda em tempos de guerra

Durante a nossa vida escolar, os livros de história nos bombardeiam com eventos catastróficos que permeram a vida humana na Terra. Guerras, epidemias, desastres naturais e dentre todos eles, não houve um sequer evento que não influenciou diretamente a forma como as pessoas se vestem. Pensar em moda como uma linguagem de comunicação intrínseca ao homem, é pensar em moda como um aspecto cultural que é capaz de se inovar a cada transformação que a humanidade passa. 

É necessário compreender a moda como um agente influente na economia mundial, não só pelo seu caráter artístico ou cultural, a indústria da moda é um dos setores que mais movimenta capital no mundo. Somente no varejo online, a moda é o setor que mais lucra entre os e-commerces, reportando um faturamento entre USD$525 bilhões por ano e sua média de crescimento espera atingir a casa do trilhão até o ano de 2025. 

No Brasil, mais de 8 milhões de pessoas fazem parte da cadeia produtiva da indústria da moda, sendo que 60% desses trabalhadores são mulheres, segundo a Associação Brasileira da Indústria Têxtil (ABIT). Isto significa que insistir no debate retrógrado que julga a indústria da moda como supérflua e desnecessária só impossibilita o potencial político que a moda pode ter em períodos críticos. 

Operárias mulheres trabalhando em fábricas europeias durante a Primeira Guerra Mundial. 
[FOTO: Reprodução – Reuters/ Archive of Modern Conflict London]

Ao traçar uma linha do tempo, percebemos que em cada momento em que a humanidade passou por uma grande crise, seu guarda roupa consequentemente passa também por uma transformação. Quando avaliamos os períodos caóticos do século passado, que são momentos historicamente não muito distantes do que se vive hoje, é nítida a mudança de vestuário ao longo deste século, desde a Primeira Guerra, passando pela Crise de 29, Segunda Guerra, Crise do Petróleo,  e outros vários eventos que implodiram na história.

A Grande Guerra ou Primeira Guerra Mundial, foi a primeira guerra que de fato revolucionou a indústria têxtil de modo como nenhuma outra crise humanitária mundial foi capaz de fazer até então. Com a eclosão da Guerra, grande parte dos homens tiveram que deixar seus lares com a obrigação de servirem seu país no serviço militar, o que desencadeou o aumento exponencial da classe trabalhadora feminina nas fábricas e nos negócios em toda Europa que viram necessidade de mudar o uniforme e a roupa cotidiana das mulheres. 

A guerra mudou o horizonte da moda em muitos sentidos, mas o protagonismo francês na indústria soube se manter intacto. Mesmo com os horrores da guerra, um sentimento negacionista tomou conta dos profissionais do mercado, e ao longo do primeiro ano de guerra estilistas e veículos de comunicação da época como o The Queen, no Reino Unido, mal comentaram sobre os eventos que se sucediam. 

Na metade dos anos 10, a moda se viu obrigada a mudar e o que gerou o abandono doo corset do guarda-roupa feminino e o encurtamento da bainha das saias, refletindo diretamente na mudança de papel social e econômico que a mulher teve, de uma mãe e dona de casa para uma operária fabril. Levando em conta que somente na França a indústria têxtil foi responsável pelo sustento de 34% das famílias da classe proletária, país este que foi um grande agente tanto na Primeira como na Segunda Guerra, é de se imaginar o impacto que esse setor teve na vida e na moda da época. 

Foi só a partir de 1915, que as primeiras referências militares começaram a nascer no design dos modelos da época. No vestuário feminino, casacos de corte discreto e silhuetas com uma cintura levemente marcada, além disso foi nessa época que as roupas femininas começaram a adquirir bolsos como compartimentos de utilidade, bolsos chapados e espaços, o que só aumentou ainda mais o eco militar na indumentária. 

Durante os anos em conflito, as fábricas de tecido se viram encurraladas a focar suas operações na fabricação e entrega de materiais que serviriam de insumo para uniformes militares. Como a maior parte da indústria têxtil focava sua produção nos tecidos naturais como o couro e o algodão, consequentemente esses materiais foram os principais produtos direcionados para confecção do vestuário militar, o que causou sua escassez no  estilo civil. Assim, as primeiras peças sintéticas de roupa como o Acetato e Rayon Viscose começaram a ganhar sucesso justamente nesse período onde não se podia mais depender unicamente das fibras naturais.

O maior legado que a Primeira Guerra deixou em termos de vestuário no geral, foi sem sombra de dúvidas o foco na praticidade no cotidiano. Blusas de algodão ou seda sem abotoamento,  a “extinção” das quatro mudas de roupas por dia em prol dos looks diurnos e noturnos, além das “novidades” da época em tecnologia têxtil.

Propaganda sobre a ‘Nova fibra milagrosa’, o Nylon. [FOTO: Reprodução – Blog Descalada]

A moda como um todo se voltou para os conflitos, e grandes nomes da indústria como o próprio Paul Poiret foi convocado pelo exército francês e esteve presente na confecção de uniformes militares. À medida que a silhueta feminina se alargava e a paleta de cores escurecia, a indústria da moda se viu encurralada pelo sentimento de perda e limitada nestes tempos de escassez. 

Logo depois, o mundo foi imerso em uma série de eventos que continuariam a impactar o vestuário da época como a  infestação da Gripe Espanhola, as festas regadas a álcool e drogas dos anos loucos de 1920 e em seguida mais uma vez, uma  Segunda Guerra que viria a acabar com a vida de 40 milhões de pessoas em toda a Europa. A partir da popularização do nylon, com o início da Segunda Guerra, as grandes fábricas têxteis se voltaram para a produção em massa da fibra para atender as necessidades dos exércitos na fabricação de mangueiras, cintos e outros artigos de vestuário militar. 

Por conta do foco em atender as atividades bélicas, o nylon deixou de fazer parte da produção de meias calças femininas, e só após a segunda metade dos anos de 1940 que a indústria têxtil volta a ter esse olhar para as mulheres. Enquanto isso, a popularização das calças entre as mulheres e as máscaras de gás foram gradualmente afirmando seu espaço no dia-a-dia das pessoas, por conta dos constantes ataques de bombas de gás direcionados aos civis durante os anos de conflito.

Máscaras de gás [FOTO: Reprodução/ Aventuras Na História]

Rapidamente após a primeira declaração de guerra, os designers da época se mobilizaram em oferecer modelos já pensados no contexto de conflito. O próprio governo da França só permitiu que os estilistas envolvidos nas confecções de roupas militares tivessem duas semanas para lançarem suas coleções de Outono/Inverno com a iminente guerra. Com a ocupação alemã em solo parisiense, a moda nacional se dispersou e as notícias de novas criações fashion não eram divulgadas da mesma forma como antes, e mesmo assim a moda soube sobreviver aos anos de escassez de insumos.

Os estilos civis não tiveram mudanças somente por conta das restrições de regras utilitárias, o guarda-roupa feminino, por exemplo se preocupava em sempre manter a boa aparência ao mesmo tempo que tinha de ser prática para vida domiciliar e a carreira profissional, enquanto que o vestuário masculino civil tornou-se cada vez mais informal, com camisas de pescoço aberto e calças de flanela ou tecido canelado começaram a substituir os ternos e gravatas.

O saldo da guerra foi uma Europa devastada, a potência estadunidense à todo vapor tanto no cenário econômico quanto no mundo fashion, nos primórdios do que viria a ser a Guerra Fria. Na década seguinte, o estilo utilitário seria deixado em segundo plano que a ultra-feminilidade seria o ponto em foco da moda, só confirmando o efeito pêndulo do mercado pré e pós eventos catastróficos da história humana.

A modelo Poly Kyrychenko, acompanhada de amigas, protesta contra a guerra durante a semana de Moda em Paris. [FOTO: Reprodução/In Magazine]

Um século após a Primeira Guerra, o mundo se encontra vivendo novamente esse ciclo de eventos entre a guerra na Ucrânia ocasionada pela invasão da Rússia enquanto ainda tenta se ajustar às sequelas que a pandemia da COVID-19 deixou.  

Momentos como este nos fazem questionar sobre a relevância da moda e como ela age e deve agir, enquanto milhares de vidas são destruídas. Tirar um tempo para se preocupar com roupas em eventos assim pode soar até um tanto presunçoso, mas é exatamente em instantes difíceis como este que a moda foi capaz de revolucionar a maneira de viver das pessoas. Da mesma forma que ocorreu no passado, não seria diferente que o potencial político e social da moda se manifestasse na atual conjuntura que o planeta se encontra. 

Em plena temporada de Outono/Inverno 2022, durante as semanas de moda que ocorriam nas maiores capitais do mundo fashion, a invasão russa em território ucraniano tomou os holofotes de todos os veículos de comunicação e foi impossível a comunidade fashionista se manter indiferente diante do início de um horror que todos presenciam até hoje, dois meses após o primeiro ataque do exército de Vladimir Putin, em 24 de fevereiro deste ano. 

Ao longo dos dias com a pressão da imprensa sobre o assunto, e o aumento das manifestações à favor da Ucrânia tanto no ambiente digital como nas portas dos desfiles, que os gigantes da indústria fashion se viram obrigados a tomar partido e se posicionar, até porque é o primeiro conflito em solo europeu desde a Segunda Guerra. 

Manifestantes ucranianos pediram o apoio da comunidade fashion pelas redes sociais e o fim de qualquer relação comercial com a Rússia, incluindo os grandes conglomerados de luxo e os canais de comunicação dentro da moda. Dentre as iniciativas, um manifesto assinado por mais de 1500 profissionais do ramo como a designer italiana Angela Missoni, o fotógrafo Nick Knight, entre outros, repudia a violência russa.

“Lutamos continuamente por um mundo onde a expressão criativa, o intercâmbio cultural e a colaboração possam florescer. A violência da invasão russa vai contra tudo o que defendemos… A moda tem poder, e em tempos de crise é fácil descartar esse poder… mas somos uma cadeia de suprimentos que conectam países do mundo todo” declara o texto.

 Uma das primeiras grifes a se posicionar em relação ao confronto foi a marca húngara Nanushka, o próprio CEO, Peter Baldaszti, deu uma declaração sobre o fim das vendas em território russo afirmando que a decisão foi necessária levando em consideração os valores morais da marca. Além disso, Baldaszti deixa claro que “esta é uma decisão financeira relevante para a marca”.

Tanto a Nanushka como outras marcas de luxo, tiveram suas relações comerciais afetadas pelo embargo comercial, levando em conta o grande investimento de oligarcas e milionários russos no mercado da moda, uma das poucas que não teve o mesmo azar foi a Bvlgari, que teve um aumento de vendas dentro da ex-União Soviética.

Look 1, Nanushka temporada de Outono/Inverno 2022. [FOTO: Reprodução/ Vogue Runway]

LVMH e grupo Kering afirmaram que seu plano de apoio seria por meio de doações de valores não divulgados ao Comitê Internacional da Cruz Vermelha e à Agência de Refugiados da ONU, respectivamente. Assim, os gigantes da indústria seguiram o “efeito manada” e continuaram um por um com suas declarações sobre doações e bloqueios comerciais, como uma forma de auxílio aos vizinhos do leste europeu. 

Outras marcas lançaram suas campanhas de doações às ONG’s que se movimentaram para atender os refugiados e além disso suspenderam suas vendas na Rússia, como foi o caso da Adidas que tirou seu patrocínio da Federação Russa de futebol, e marcas como Chanel, a rede varejista H&M e Boohoo

Por outro lado,  houveram grifes que decidiram “ir além” e tomar partido durante os desfiles, como foi o caso da Balenciaga sob direção criativa do Demna Gvasalia. Ele mesmo já passou pelo terror  de ser um refugiado como os ucranianos, com a invasão russa na Geórgia em 2014, seu país natal.  “O mesmo agressor, talvez até os mesmos aviões que fizeram isso conosco. E vendo isso, fiquei pensando: ‘O que estamos fazendo aqui, com moda? Devo cancelar? mas não: decidi que devemos resistir.”, disse Gvasalia.

Toda a ambientação da passarela  girou em torno de um meio insalubre e quase inóspito, com quilos de neve em meio à uma “intensa” nevasca, os modelos desfilavam em uma plataforma ‘em meia lua’ segurando grandes sacos em pesadas roupas de inverno e óculos em formato de olhos de mosquito à la Gvasalia. O desfile foi a representação da peregrinação distópica nas péssimas condições que os refugiados ucranianos têm passado nos últimos dois meses. Gvasalia também incorporou à coleção as cores da bandeira ucraniana em homenagem aos refugiados.

Gvasalia não foi o único a falar sobre o assunto abertamente durante um desfile, Giorgio Armani aproveitou o momento e deu também seu parecer. O evento foi aberto com uma fala em inglês do próprio designer italiano. 

“Minha decisão de não usar música no show foi tomada como um sinal de respeito às pessoas afetadas pela tragédia em evolução.”,  declarou Armani. Em conjunto com essa fala, o Grupo Armani foi responsável pela doação de 500 mil euros pela arrecadação de fundos pela Organização das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR).

Ao sair da ajuda monetária o Grupo Armani também declarou um iniciativa de auxílio envolvendo o vestuário, de acordo com a empresa seria realizado doações de roupas essenciais ao refugiados feita pela Comunidade de Sant’Egidio, organização católica sediada em Roma com um histórico em ajuda à refugiados e mediação de paz.

Look 46, Giorgio Armani coleção de Outono/Inverno 2022.
[FOTO: Reprodução/ CNN] 

Diversas vezes o homem foi afetado por guerras ou crises, e assim a moda como um direto reflexo do estado de espírito deste homem, renasce; seja como válvula de escape, seja como portal de voz. Mas levando em conta a moda e todas as variáveis comerciais que envolvem essa indústria avaliada em milhões de dólares, até onde a moda ultrapassa o senso de agir de boa fé em prol dos afetados, e começa a agir pelo simples e bom marketing para atrair o holofote midiático?

Porque é fácil mostrar apoio e interesse em se posicionar em momentos onde o foco de todos os veículos de comunicação gira em torno da crise. Avaliar a transparência e honestidade das marcas que prometeram auxílio nos próximos meses é o caminho para tirarmos a limpo o papel ativista que o mercado de moda tem tomado para si nesses últimos eventos caóticos.

Não falta muito para podermos esmiuçar os impactos que o momento pode gerar no vestuário, mas há a certeza de que, nestes tempos conturbados como os de hoje com uma guerra atrás de uma pandemia, a moda está cada vez mais dinâmica e com tendências de ritmos desenfreados. Acima de tudo, tirar um instante de reflexão sobre o papel da moda tanto dentro do nosso cotidiano como em contexto maiores, como uma guerra ou um cenário econômico, é o início de toda mudança capaz de nascer dessa indústria. “Em tempos difíceis, a moda é sempre escandalosa”, Elsa Schiaparelli.

Alina Friendiy, influenciadora ucraniana em protesto à invasão ucraniana.
[FOTO: Reprodução/Instagram]

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