por Livia Mota e Sofia Marchetti
O isolamento social e confinamento aos quais a população brasileira foi submetida nos últimos dois anos por conta da pandemia de Covid-19, promoveu um aumento significativo nos casos de violência doméstica contra a mulher e, consequentemente, nos casos de feminicídio, que é o homicídio praticado contra a mulher em decorrência do fato de ela ser mulher (misoginia e menosprezo pela condição feminina ou discriminação de gênero, fatores que também podem envolver violência sexual) ou em decorrência de violência doméstica.
A violência doméstica é um fenômeno que não distingue raça, classe social, religião, etnia, gênero, orientação sexual, idade ou grau de escolaridade. Qualquer um pode passar por essa situação. Até mesmo Johnny Depp, ator consagrado e indicado ao Oscar três vezes, denunciou sua ex-namorada de agredi-lo verbalmente e fisicamente na antiga relação. No entanto, na maioria dos casos, as vítimas são mulheres – e essas ocorrências estão diretamente e, na maioria das vezes, ligadas ao feminicídio.
Uma pesquisa realizada pela Rede Nossa São Paulo em agosto de 2021, menos de um ano atrás, mostrou que 85% da população paulistana acredita que tenha aumentado a violência doméstica e familiar contra as mulheres na cidade. Mais de um terço alegou, também, ter presenciado ou ouvido falar de agressões contra mulheres próximo do local onde moram.
Em contraponto a este fato, segundo um levantamento do G1, as denúncias de casos de feminicídio recebidas pelo Disque Denúncia cresceram 35% em São Paulo durante o mês de março de 2022. Em 2022, foram registradas o total de 57 denúncias contra 42 em março de 2021.
Porém, embora todas as mulheres possam ser alvo e sejam vítimas mais frequentes de casos de violência doméstica, há aquelas que se destacam; e números alarmantes são registrados.
A violência contra a mulher negra
Dentre os círculos mais vulneráveis, estão as mulheres pretas e pardas que se destacam com o maior número de casos.
Elas representam 55% da população feminina da cidade. Na pesquisa realizada pela Rede Nossa São Paulo, é maior a quantidade de pessoas que se autodeclaram pretas ou pardas e que afirmam ter presenciado ou ouvido falar de casos de violência contra conhecidas.
Segundo informações do Mapa da Violência 2015, no período entre 2003 e 2013, o número de homicídios de mulheres negras saltou de 1.864, em 2003, para 2.875, em 2013. Em contraposição, houve recuo de 9,8% nos crimes envolvendo mulheres brancas, que caiu de 1.747 para 1.576 entre os anos. A maioria das vítimas de crimes violentos são mulheres jovens, pobres e negras. Embora esses dados sejam antigos, ainda se refletem nos dias atuais: segundo os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2020, 17 milhões de mulheres foram vítimas de alguma forma de violência no Brasil – ao menos é o que afirma a Agência Câmara de Notícias.
Os gráficos a seguir mostram a porcentagem por segmento de sexo, idade e raça, de paulistanos que presenciaram ou souberam de casos de violência doméstica contra mulheres:


A deputada Tereza Nelma (PSDB-AL) lembrou, como parte dos 21 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra a Mulher, que esse tipo de agressão atinge 52% das mulheres pretas, 40% das mulheres pardas e 30% das mulheres brancas. A pandemia, ainda, afetou mais as mulheres negras, que são responsáveis por 61% dos 11 milhões de lares, regidos apenas por um dos pais. “Para além dos índices de violência, as mulheres negras também foram as mais afetadas pelos impactos socioeconômicos da pandemia, com a perda de emprego e renda e a impossibilidade de trabalhar fora de casa.”
A Coordenadora da Delegacia de Defesa da Mulher de São Paulo, Dra. Jamila Ferrari, também reforçou a informação. Segundo ela, as denúncias de violência doméstica são maiores entre vítimas negras ou pardas:
“Em uma análise superficial, considerando o público que nós atendemos, acredito que os motivos sejam históricos e sociais. Nós sabemos que a maioria das mulheres negras e pardas ainda vivem em comunidades, favelas e são de uma classe social mais baixa. Não significa que na classe mais alta não haja violência contra a mulher, existe, mas são formas diferentes de pedir ajuda. As mulheres socialmente mais pobres ou com baixa escolaridade só têm a polícia a recorrer. As mulheres de nível social mais alto, muitas vezes procuram outras formas de denúncia”.
A causa cultural
A violência contra a mulher não é um problema exclusivo do Brasil. Ela acontece ao redor do mundo todo e é resultado de uma cultura patriarcal que está intrinsecamente vinculada aos fundamentos da nossa sociedade. Essa cultura existe desde o início da humanidade e é responsável por privilegiar o homem em todos os sentidos e tratar com desigualdade as mulheres, considerando-as de gênero inferior.
Por isso, durante muito tempo, o ser feminino foi tratado como um objeto, que servia apenas em benefício ao marido e aos filhos. Foi somente em 1970 que se começou a falar de feminismo em termos mundiais. Desde então, existe uma luta pela qual praticamente todas as mulheres participam pela igualdade de direitos. Mas, infelizmente, ainda existem inúmeros comportamentos e ideologias machistas que estão presentes no cotidiano e que são refletidos nos altos números de violência contra a mulher descritos acima.
O problema é tão profundo, que se inicia na criação das mulheres: ensina que elas são dependentes de um homem, precisam ser ‘’salvas” por ele e construir uma família juntos. Por conta disso, a maioria dos relacionamentos entre homens e mulheres se constroem na ideologia de que o homem precisa “mandar” e a mulher “obedecer”. Não à toa são repletos de discussões e brigas causadas por comportamentos machistas que são praticados inconscientemente pelo homem e, por reflexos de uma criação patriarcal, absorvidos pela mulher como algo comum.
Não é no início de um relacionamento que se inicia a agressão física. O abuso, muitas vezes, começa a partir de uma agressão verbal e psicológica. A psicóloga clínica, Joceline Conrado, explica que o relacionamento abusivo começa quando o outro começa a ter exigências demais com seu parceiro, ao ponto de praticar uma violência de gênero:
“Excesso de amor, excesso de cuidado, as limitações, comentários como ‘troca essa roupa’, ‘não vai nesse encontro’, são essas imposições que vão demarcando um processo em que o outro quer se apropriar das escolhas do seu parceiro, anulando totalmente a sua subjetividade.”
Crises de ciúmes, camufladas por “eu te amo muito, te quero só para mim” ou tentativas de anular a mulher como “eu te amo tanto, não quero que você trabalhe, vou te dar tudo o que quiser”. Assim, aos poucos, a mulher deixa de ter independência e não consegue ter o direito de ir e vir porque tudo vira briga. E, em nome do amor, como a ensinaram, ela abre mão das mínimas coisas.
É nessa hora que o abusador, ao perceber suas demandas aceitas, cria mais liberdade na relação e começa a se expressar de maneira mais autoritária, falando mal da família e amigos da mulher, tirando toda a sua rede de apoio. Junto disso, vem o gashlighting, que significa fazer a mulher acreditar que perdeu o senso crítico. Um claro exemplo é a famosa frase “eu te chamei de gorda, mas estava brincando, você parece uma louca”. Assim, ela vai desacreditando da própria percepção e ficando cada vez mais fragilizada dentro da relação.
Portanto, são nessas atitudes que surgem os sinais de um relacionamento abusivo e, possivelmente, surge também o início de um ciclo de violência doméstica, descrita pela Jamila Ribeiro como “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que cause à mulher morte, lesão, sofrimento físico, sexual, psicológico e dano moral ou patrimonial.”.
Mas, para a mulher perceber que está dentro de um relacionamento, ela tem que passar por um processo difícil, pois existe a dependência financeira, a emocional, a psicológica, algumas vezes existem filhos e outras variáveis que tornam o término mais complicado.
Joceline ainda explica que existem questões étnico raciais, de classe e de gênero, que dificultam a saída de um relacionamento abusivo e, também, implicam nos traumas que dele virão.
“Se a gente pegar por exemplo uma perspectiva étnico racial: como é que mulheres pretas vivenciam o afeto? E, dentro de uma relação abusiva, como isso pode traumatizá-las ainda mais a se permitir e se perceber enquanto sujeito digno de ser amado? Existem diferentes traumas que podem implicar na mesma pessoa, inclusive traumas físicos como não conseguir ter outras relações, ter medo de se relacionar, de não confiar, de ter uma fragilidade do laço social com o outro. Essas questões ficam bem demarcadas.”
As consequências da violência contra a mulher são inúmeras. Mas, em geral, a maioria das vítimas são acometidas por quadros de depressão, ansiedade, síndrome do pânico, podendo chegar até ao suicidio. Por isso, é muito importante que elas percebam os sinais de um relacionamento abusivo no início e busquem ajuda, antes dele progredir para a agressão física.
O combate
Precisamos, juntas, diminuir a porcentagem de casos de violência doméstica. Por questões sociais, políticas, educativas, culturais e de proteção social.
As Delegacias de Defesa da Mulher passaram a existir em 1985 e São Paulo foi o primeiro Estado no Brasil a contar com uma delegacia especializada no atendimento de mulheres vítimas de violência física, moral e sexual. Embora em 1996 as delegacias tenham aberto, também, para casos de violência contra crianças e adolescentes, o cerne é o mesmo: apoiar aqueles em situação de vulnerabilidade e promover a segurança a quem precisa. “Não tenham medo de denunciar. Quando você denuncia, você permite que o Estado esteja de olho nesse agressor, através das medidas protetivas de urgência. Assim, o Estado irá conseguir te proteger efetivamente.”, defende Jamila.
A Coordenadora da Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) ainda ressalta que a culpa nunca é da vítima. Caso ela não queira se dirigir diretamente a delegacia, que ela ao menos procure um familiar, uma amiga ou uma assistente social que possa oferecer amparo, “para se sentir forte o suficiente para conseguir registrar esse boletim de ocorrência, pedir medida protetiva e ser, a partir de então, protegida pelo governo.”
Existem leis e programas que, assim como as DDMs, buscam fornecer apoio às mulheres em situação de risco. Jamila afirma que “no Estado de SP, pelo menos, nós temos diversas políticas públicas, tanto voltadas para a assistência social, quanto para saúde, quanto na segurança, que, de alguma forma, surtem efeito.”
A famosa Lei Maria da Penha, por exemplo, instituiu novas formas de reduzir esses tipos de violência de gênero e ainda criou providências que tendem a um atendimento mais rápido. As antigas medidas emergenciais de proteção, como o afastamento do agressor, não eram tão rápidas, porque as mulheres precisavam de um advogado para fazer qualquer pedido ao juiz; mas agora, o próprio delegado manda a solicitação e faz com que todos os trâmites do processo sejam mais rápidos e diretos.
Outro exemplo é o Programa Bem-Me-Quer, desenvolvido pela Secretaria de Segurança Pública em conjunto com a Secretaria da Saúde. O principal objetivo do projeto é dar atendimento a vítimas de estupro, atentado violento ao pudor, sedução ou outros crimes relacionados. São usadas integrações entre polícia, serviço médico, psicológico e jurídico, além de sempre levar a mulher ao Hospital Pérola Byington, o Centro de Referência da Saúde da Mulher.

Segundo a pesquisa da Rede Nossa São Paulo, as mulheres defendem que a melhor maneira de combater a violência doméstica é o aumento das penas ao criminoso, seguido de uma maior aumento na proporção de mulheres que pedem por um treinamento mais adequado de funcionários, para que possam melhor acolher aquelas que procuram os canais de denúncia.
No entanto, o ideal seria que esses crimes não existissem. Queremos que os números e porcentagens cheguem a zero e, para isso, é necessário voltar a bater em uma tecla que sempre é levantada: a educação.
“A melhor maneira, na minha opinião, para se enfrentar a violência doméstica é a educação. Nós sabemos que políticas públicas salvam vidas, mas quando a política pública existe, normalmente o crime já aconteceu. Então nós precisamos impedir que o crime aconteça e, para impedir que o crime aconteça, nós precisamos modificar paradigmas principalmente com relação ao machismo, ao patriarcado e à ideia de que mulher é um ser inferior ao homem.”, defende Jamila.
Sobretudo a denúncia é fundamental, todavia, para além da denúncia, é preciso reformar a consciência machista que paira mesmo entre policiais, juízes e toda a equipe que tem o dever de assessorar a mulher em sua denúncia. Metade das polícias deveria ser constituída por mulheres e deveria haver educação feminista para policiais e membros do judiciário. Além disso, estamos notando que muitas vezes as DEAMS – cujo projeto inicial deveria ser o atendimento de excelência dos casos de violência contra a mulher num ambiente em que a agredida se sentisse à vontade, preferencialmente com atendentes mulheres – não têm por vezes uma estrutura satisfatória. Fomos verificar como está o atendimento na DEAM do Centro do Rio de Janeiro, na rua Visconde do Rio Branco e constatamos que no dia havia uma mocinha sozinha com um único policial homem atendendo, mais ninguém na recepção.
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