Os Efeitos do Male Gaze na Moda: contexto, psicologia e a female gaze

O “gaze” (em tradução livre, olhar / contemplar com fixação) é um termo relacionado à cultura visual, se refere à uma perspectiva empregada no cinema, no teatro e em demais manifestações artísticas: O “male gaze”, então, pode ser definido como o olhar masculino (heteronormativo), que dirige a cena e controla a câmera (e assim, o gaze), satisfazendo tal público, através de ideologias e discursos patriarcais – feito por e para homens – mas além disso, reflete a forma como estes enxergam e lidam com o mundo ao seu redor.

Laura Mulvey, crítica cinematográfica britânica, foi quem deu origem ao termo “Male Gaze” em 1975, utilizado pela primeira vez em seu ensaio, intitulado “Visual Pleasure and Narrative Cinema”, no qual ela utiliza da psicanálise para questionar a imagem feminina no cinema, ao analisar os tradicionais filmes de Hollywood, dos anos 40 e 50. Criados por uma indústria controlada exclusivamente por homens, Mulvey sugere que este olhar classifica as mulheres como objeto passivo das narrativas, incluídas nas tramas apenas para satisfazer o desejo masculino, sem agregar valor ao enredo, em cenas hipersexualizadas, através de aparências codificadas por forte impacto visual erótico. 

Apesar de o termo em questão ter surgido a partir de uma perspectiva cinematográfica, o male gaze pode ser identificado nas demais indústrias que apresentam relação direta com a arte. Na publicidade, a mulher se torna o objeto de desejo a ser vendido para o público masculino, enquanto para o público feminino, vende-se a ideia de que só serão dignas de apreço ao seguir determinado padrão, pautado em um ideal (físico e comportamental) socialmente imposto. Até mesmo na indústria dos games, podemos usar o exemplo da icônica personagem Lara Croft, que nos leva a questionar se a mesma, seria uma heroína feminista – visto que foi uma das primeiras personagens femininas com um papel ativo em jogos de ação – ou, mais uma representação da objetificação feminina – desenhada com um apelo sexual intrínseco.

Campanha publicitária do cereal PEP by Kellogs – 1939 [Reprodução / Pinterest
Suitsupply Spring/Summer 2014 [Reprodução / Pinterest]

Como o figurino é um dos elementos essenciais para a construção de uma personagem, a hipersexualização acaba sendo também transmitida para o estilo desta; se “a vida imita a arte”, esses códigos são incorporados pela sociedade e refletem na moda; o mesmo acontece com os padrões estéticos irreais, que são assimilados pela população, distorcendo a forma como enxergamos o mundo e a nós mesmas. O impacto gerado pelo male gaze pode ter passado despercebido por gerações anteriores, possivelmente, pelo fato de que a quebra de antigos costumes nos deu uma falsa sensação de liberdade e empoderamento. Porém, recentemente, foi levantado um questionamento por criadores de conteúdo no aplicativo “TikTok”, ao indagar: por quê quando mulheres optam por roupas mais extravagantes / fluidas / coloridas / diferentes, que não são consideradas sensuais, geralmente percebem olhares de admiração vindo de outras mulheres e, olhares de reprovação vindo de homens? Foi então, que os impactos do olhar masculino começaram a ser notados, também, na moda, pela geração Z. Rapidamente, outras trends que abordam esta temática, também tomaram conta das redes sociais; uma das mais populares consiste em representar personagens em situações cotidianas ou hipotéticas, sob o ponto de vista do male gaze, a partir de uma análise, acerca de sua aparência, estilo e comportamento, o que comprova sua influência em nossas personalidades.

Em entrevista concedida à Frenezi, a stylist e produtora de moda, Lívia Cady (@liviacady) reconhece que o olhar masculino sobre a mulher e, a objetificação sexual de sua imagem, implicam numa auto observação deturpada, além de influenciar também no lifestyle e preferências individuais (que infelizmente, acabam sendo generalizadas), relacionados com o estilo pessoal, que também pode ter seu desenvolvimento e construção prejudicados .

“Essa é uma herança histórica que está enraizada e muito presente no nosso dia-a-dia, lidamos com isso o tempo inteiro. Como profissional, meu papel é justamente, conduzir o/a cliente nesse processo de autoconhecimento e empoderamento de sua própria imagem, para que ele/ela não permaneça refém dessa dinâmica machista e, que o seu estilo não seja moldado de acordo a satisfazer às expectativas alheias e sim, às suas próprias”, ela explica.

Discussões acerca da feminilidade, também foram levantadas em debates sobre o male gaze na internet; comparações generalizadas e sem fundamentação teórica, que a relacionam à futilidade contribuem para a repreensão do feminino e afirmação de discursos patriarcais. O estereótipo ‘pick-me girl’, também foi bastante citado e, apesar de divergir (teoricamente) dos padrões hipersexualizados, impostos pelo male gaze, acaba por fomentar a rivalidade feminina, a partir da premissa de superioridade de quem despreza aspectos e elementos considerados “de mulherzinha” e se diz “diferente das outras garotas”, por basear seus interesses em elementos compreendidos socialmente, como masculinos, o que pode se tratar de mais um reflexo da inferiorização do feminino, pela construção social patriarcal.

Com uma extensa bagagem de campanhas publicitárias misóginas, a fast fashion estadunidense, American Apparel, fundada por Dov Charney (o qual já recebeu inúmeras acusações de assédio sexual), entrou em alerta de falência, em 2015, após uma série de boicotes à marca. Em 2021, foi anunciado o fechamento de todas as suas 110 lojas pelos Estados Unidos – porém, suas peças continuam à venda através da atacadista Gildan Brands, após um acordo que custou 88 milhões de dólares; mas (felizmente), é inegável o apagamento da marca, que teve o seu auge durante os anos 2000. 

American Apparel, catálogo da coleção Fall 2013 – Unissex Clothing [Reprodução / Feminist Film Studies Fall 2018]

Já a coleção outono / inverno 2022 da Roberto Cavalli, apesar de ter sido desenhada por Fausto Puglisi, em seu primeiro desfile como diretor criativo da casa, apresentado na Semana de Moda de Milão, trouxe um olhar feminino acerca da sexualidade. A marca conhecida por peças extremamente sexys e extravagantes, ganhou uma nova “mulher Cavali”, com um toque de romantismo, marcado pelos florais e, intelectualidade, simbolizada pelas estampas xadrez (utilizadas pela primeira vez na Cavalli). Puglisi conseguiu equilibrar sensualidade, feminilidade e conforto, numa releitura moderna do tão comentado empoderamento feminino.

Roberto Cavalli Fall Winter 2022 – Milan Fashion Week [Reprodução / Pinterest]

O Female Gaze, baseado em teoria feminista, surge em contraponto ao olhar masculino, numa busca pelo desvencilhamento destes padrões; a moda aparece como forma de subversão e escapismo. Em um mundo onde o conceito de ‘gênero’ é fluido, há quem ache irrelevante esta dicotomia, porém, é imprescindível que atentemos a essas representações e seus significados, para que nossa autonomia seja mantida dentro e fora das telas. Mas, numa sociedade onde mulheres são objetificadas de todas as formas possíveis – e independentemente da roupa que se veste – é possível lutar contra o male gaze?


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