Para todo bom amante da moda, os estudos iniciais sobre esse universo e todas as facetas que englobam essa indústria avaliada em zilhões de dólares é fundamental tirar um tempo para entender a cronologia histórica por trás de todo o movimento fashion que vemos nas ruas, nas redes sociais, lojas, marketing e como Zeitgeist que vivemos hoje influencia no look que escolhemos ao acordar pela manhã.
Desde sempre, a indumentária foi mudada e adaptada para se adequar às necessidades, deveres, e aspectos culturais e temporais do homem que cada período histórico requisitou. Assim, cada década de alguma forma deixou sua marca na forma de vestir das pessoas que a viveram, mas também influenciou os anos subsequentes.
Ainda hoje vemos nos pequenos detalhes peças, acabamentos e técnicas têxteis que são rastros de um tempo passado, um tempo que talvez possa remontar até mesmo séculos de herança no processo de confecção.
Há exatos 100 anos, o planeta se encontrava em situações muito parecidos com o mundo que vemos hoje, os momentos finais da década de 1910 deixou cicatrizes quase que incuráveis na geração que adentrava o que se chamaria num futuro próximo de “Os anos loucos” da década de 1920.

Com o início da Primeira Guerra Mundial no ano de 1914, todo o restante dos anos de 1910 foi marcado pela escassez de materiais e aviamentos têxteis, o que prejudicou exponencialmente a oferta do varejo e o ‘fazer moda’ da época. Os efeitos da guerra nas roupas foram inúmeros, conforme pontuamos na nossa matéria ‘A moda em tempos de guerra’, assim como os efeitos que a guerra causou na mentalidade daquela geração.
Após serem traumatizados por uma guerra que chegou a matar quase 20 milhões de pessoas e logo depois sofrerem as consequências de uma pandemia colossal como a da Gripe Espanhola, homens e mulheres da época só pensavam em aproveitar seus dias ao máximo, a famosa era “carpe diem” dos tempos modernos. Pensar que poderia haver uma ameaça ao bem estar e à vida a qualquer instante instaurou um anseio eufórico por aproveitar a vida sem precedentes.
“Tudo o que eu só conseguia pensar, de novo e de novo, era ‘você não pode viver para sempre, você não pode viver para sempre”, disse F. Scott Fitzgerald em ‘O Grande Gatsby’ (1925); a frase consegue sintetizar o maior medo dessa geração perdida, medo de não conseguirem aproveitar a vida ao máximo e que serviu de palanque para dar passe livre às festas regadas a álcool e drogas, muita música, luxo e ostentação.
A Grande Guerra propiciou a adesão de acabamentos e ornamentos de cunho militar nas roupas e com o fim dela a moda teve de se ajustar ao sentimento eufórico ‘pelo viver’ que surgia nos sobreviventes. Em plena Paris, a moda internacional e a alta-costura viram suas vendas voltarem a todo vapor ao normal e as grandes confecções viram a oportunidade de aumentar a contratação de mão de obra.
O momento era de euforia, as grandes maisons viram uma procura muito grande por vestidos de festas extravagantes e assim as mais recentes criações de moda – da época – tinham a liberdade de seguir por dois caminhos, a estética do clássico feminino romântico e o vanguardista. Seda, organza, tafetá, fitas e flores em vestidos de cores pastéis eram a definição do romântico nos trajes de gala. Por outro lado, seu maior antagonista foi quem passaria a ditar a moda dos anos 20, o visual garçonne ou jeune fille – jovem homem ou rapaz.

[FOTO: Reprodução/ Warner BROS. Pictures]
Como um reflexo de uma sociedade em transformação, a gradual independência das mulheres começou a ecoar não só em seu comportamento libertário de lutar pelos seu direito de voto e de trabalho mas também começou a deixar seus primeiros vestígios no visual, o estilo garçonne é o maior exemplo disso.
A aparência jovial e ‘moleque’ que o estilo passava aos olhares facilitava ao se juntar com os chapéus cloche – em forma de sino – na composição de uma silhueta esguia e alongada do qual os estilistas começavam a experimentar nos primórdios da década.
Trajes femininos com silhueta retangular ou em linha “I”, que pendiam dos ombros enquanto a linha da cintura descia ao mesmo nível que a linha dos quadris, começaram a dominar o vestuário das trend setters da época, a própria Coco Chanel foi uma das principais expoentes do estilo garçonne. Em conjunto com a silhueta reta, a mudança na bainha das saias foi um ponto muito marcante para o vestuário feminino. Ao encurtar as saias, a procura pelas meias de seda sempre em cores neutras e ‘coringas’ com bordados discretos para finalizar o charme nas pernas.
Já nos pés, os scarpins estilo ‘boneca’ de salto cubano e com tiras cruzadas em ‘T’ foram os principais calçados do aparentemente novo grupo de mão de obra que vinha surgindo na Europa desde a Grande Guerra. Os sapatos eram o equilíbrio perfeito entre o elegante e o confortável para garantir uma jornada de trabalho no mínimo cômoda para essas mulheres.

Precisamos entender que toda a geração perdida dos anos de 1920 ditava sua rotina, ditava sua vida em cima da busca pelo luxo e pelo ‘exótico’. A inspiração em culturas estrangeiras como a cultura do Egito Antigo, principalmente com a descoberta da tumba faraônica de Tutankhamon em 1922, e até mesmo as culturas tribais do continente americano era comum tanto em peças do vestuário como em cartões postais, estilos arquitetônicos – o próprio Art Déco, roteiros cinematográficos, joalheria e em tudo o que a arte podia se infiltrar.
Mesmo que o corte da indumentária fosse seco e simples, o luxo e o exotismo vinha através de tecidos altamente adornados por estampas e bordados com desenhos naifs, motivos folclóricos que remontavam lendas e histórias de culturas tidas como exóticas, estampas geométricas, bordados em fios de ouro e pedrarias exorbitantemente caras.
Na moda masculina, o ponto de referência de todo bom burguês na época eram as peças que vinham dos ateliês da Savile Row em Londres. As formas das roupas masculinas, com o início dos anos loucos, não poderiam estar mais em ‘voga’; suas formas angulares e simétricas, com ombros extremamente acentuados, cinturas largas e calças estreitas se comunicavam sem nenhum problema com as linhas retas que dominavam a estética Déco e egípcia do período.
Para a moda de acessórios masculinos, os sapatos de biqueira arredondada vinham com toda força substituindo os sapatos de biqueira fina, enquanto que as calças só sofriam o processo de alargamento de grupo para grupo como foi o caso dos intelectuais da Universidade de Oxford, que passaram a terem suas calças chamadas de ‘Oxford bags’. Apesar da moda internacional ter dado seus passos pelo mesmo caminho em diferentes países ao redor do globo, fashionistas britânicos e franceses continuavam com a sua rixa em ditar tendências.

Foi justamente a partir dos anos 20 que a transgressão na moda como conhecemos hoje surgiu. As primeiras criações de moda feminina com inspiração na moda masculina começaram a tomar conta dos ateliês do mais alto escalão, a própria Chanel trouxe muitos artigos do vestuário masculino em suas criações. Aquela alfaiataria bem afiada e executada, blazers e peças de cima com abotoaduras e tecidos pesados como o tweed até então não eram facilmente encontrados nas vitrines de lojas femininas.
Calças para o público feminino passaram a serem mais aceitas quando entenderam o papel estético da peça na composição do look e não mais somente como um artigo utilitário. Aos poucos mulheres foram vistas usando calças em atividades de lazer e eventos casuais, sempre com cortes folgados e com fechos laterais.
Da metade para o final da década, o ‘pretinho básico’ de Chanel em conjunto com silhuetas assimétricas, principalmente nas bainhas desiguais de saias de vestidos, echarpes e conjuntos de cardigã de jérsei foram o auge da elegância e sofisticação do guarda-roupa das mulheres. Peças sempre em cartelas de cores discretas com uma ou outra cor de destaque.

Poucos períodos na história da moda deixaram a marca que os anos loucos de 1920 deixaram. Uma década infestada de transgressões comportamentais e sociais que soube refletir nos vestuário a sede que essa geração tinha de viver, viver uma vida aproveitando ao máximo o prazer e o luxo. O ato de se vestir restaurou os valores de uma sociedade que tentava se reerguer através da arte e dos deleites ‘de viver o aqui e o agora’.
“Eram inteligentes e sofisticados, com um ar de independência sobre eles, e tão casuais sobre sua aparência, roupas e maneiras quase que impetuosas, mas representavam a onda do futuro, e sei que fui atraído por eles. Partilhei da sua inquietação, compreendi a sua determinação em libertar-se e descobrir por si mesmos o que era a vida”, Colleen Moore.
