Female rage: conheça a fúria feminina na literatura

Ao parar para pensar em todo o contexto de misoginia que atravessa a construção das sociedades desde muito tempo, não dá para negar: não estarmos tão longe assim deste passado desperta uma sensação de fúria bastante plausível. Mas esse ódio intrínseco foi renegado e banalizado sob adjetivos pejorativos. Histéricas, loucas, mentirosas, excessivas, desagradáveis, descontroladas. A lista não tem fim, afinal, todo o descontentamento que vai contrário à norma, é desmotivado. Com mulheres, especialmente, ele é menosprezado.

O crescimento do consumo de arte que retrata a fúria feminina tomou enormes proporções. Hoje, mais do que nunca. No cinema, recentes lançamentos são Bela Vingança (2020) e Garota Exemplar (2014). Ainda assim, Kill Bill (2003), Carrie (1973) e Garota Infernal (2009) nunca foram tão aclamados, tornando-se potências. Carrie e Garota Exemplar são adaptações da literatura que fizeram enorme sucesso e colaboraram para uma maior abertura da pauta. No teatro, há Eurípedes com Medéia — além de Chico Buarque e Paulo Pontes com Gota D’água, adaptando a tragédia grega a um formato abrasileirado. Ambas narram peças que jogam enormes holofotes sobre o ódio de mulheres trocadas e abandonadas, cada uma por sua versão de Jasão. O roteiro brasileiro contou, a exemplo, com a incomparável interpretação de Bibi Ferreira, que traduziu toda a urgência do furor de Joana especialmente por meio do famoso monólogo.

Pensando nisso, para as novas gerações de mulheres raivosas que acreditam na importância de falar sobre aquilo que incomoda e gera ódio, separamos quatro livros de autoras contemporâneas que não poderiam representar melhor a essência do que é female rage. Narrativas que reiteram que o desgosto, a irritação, a decepção, a vingança, a brutalidade e a fúria podem muito bem resumir a sensação de uma vida inteira de violências suportadas em silêncio.

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Animal, de Lisa Taddeo (2021)

Lisa Taddeo ficou conhecida pela obra Três Mulheres, que a tornou best-seller do New York Times. Em Animal, narra a trajetória de Joan, mulher que enfrentou diversos tipos de abusos de homens durante a vida. As coisas se reviram quando vê um deles cometer um crime brutal bem à sua frente. Em busca de abrigo, encontra Alice, pessoa que melhor poderia ajudá-la a processar a torrente de traumas.

Mordaz, violento e agridoce, Taddeo convida o leitor a mergulhar nos traumas de Joan majoritariamente causados e potencializados por homens hostis e degenerados. Deixando de ser a vítima, imobilizada e desamparada, essa é a história de como se torna a aniquiladora, a permitir que o ódio seja sentido e manifestado.

Meu nome era Eileen, de Ottessa Moshfegh

Você provavelmente conhece Ottessa Moshfegh por meio de Meu ano de descanso e relaxamento, seu best-seller mais amado, mas ela se supera com Meu nome era Eileen. Começa, aqui, a partir dos anos 1960, em uma cidadezinha da Nova Inglaterra onde a protagonista nasceu e cresceu. Essa é uma imersão no passado, na qual as memórias da Eileen de cinquenta anos atravessam a juventude e a vida adulta em meio a uma narrativa incômoda, sufocante, perturbadora e… extraordinária.

Publicada pela editora Todavia, Moshfegh é uma das mais amadas autoras contemporâneas, cujas personagens femininas são tão grandiosas e cruas, que provocam o efeito inevitável de identificação.

Dias de abandono, de Elena Ferrante

Elena Ferrante é uma das autoras que melhor traduz o ódio intrínseco de uma mulher. Em Dias de abandono, desenrolou uma narrativa intensa, absurda e genial. Originalmente publicada em 2002, segue a infelicidade de Olga ao se deparar com a realidade de um casamento desintegrado. Sem aviso prévio, é deixada pelo marido a quem dedicou mais de uma década da própria vida para cuidar dele e dos filhos que tiveram, sendo substituída por uma mulher mais jovem e bastante familiar.

Os conflitos internos que encara quando perde o rumo são incoerentes como a inconsistência dos próprios sentimentos. Ferrante dá voz à dor, à aflição e ao caos enfrentado por Olga, completamente perdida, sem nem mesmo a capacidade de cuidar de si, dos filhos ou de Otto, o cão da família.

Minha irmã, a serial killer, de Oyinkan Braithwaite

A estreia de Oyinkan Braithwaite na literatura traz uma mistura de terror e humor em medidas que equilibram uma leitura irrefreável. Korede e Ayoola são o exemplo perfeito de irmãs completamente opostas quanto à personalidade. Enquanto Korede é amarga e cética, Ayoola é vivaz e bela. Mas o encanto de Ayoola esconde muitos segredos sombrios. Estranhamente, seus três últimos namorados foram assassinados.

Em Minha irmã, a serial killer, o trama psicológico introduz uma crítica à sociedade nigeriana enquanto tece uma narrativa de humor ácido e complexo, inserindo o leitor na mente de um verdadeiro sociopata.

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Agora que está com a lista de leitura atualizada, que tal experimentar o female rage em outro tipo de arte? Preparamos uma playlist para ouvir enquanto lê essas obras de arte – ou então para gritar em seu quarto e ter um momento de extravasar a fúria.

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