[RESENHA] ‘Um lugar bem longe daqui’ é uma ode à solidão e à sobrevivência

Com mais de 15 milhões de cópias vendidas mundialmente, Um lugar bem longe daqui (2018) é o romance de estreia de Delia Owens. Recentemente adaptado para o cinema e protagonizado por Daisy Edgar-Jones, foi produzido por Reese Witherspoon — que o deu destaque em seu clube de leitura, Reese’s Book Club. Além disso, recebeu trilha sonora escrita e interpretada por ninguém menos que Taylor Swift, a canção original Carolina.

Capa brasileira [Imagem: Intrínseca]

Lançado originalmente em 2018, chegou ao Brasil pela editora Intrínseca logo em 2019. É uma coming-of-age — romance de formação que atravessa o processo de amadurecimento do personagem central da trama — que se mistura com um suspense. O real mistério se intensifica a partir de uma narração de capítulos intercalados entre passado e presente. No passado, acompanha a pequena Kya Clark que, com apenas seis anos, começa a ser abandonada aos poucos pela família. Inicialmente pela mãe, depois pelos dois irmãos e, por fim, pelo pai, que some quando a menina já tem sete anos. Alcoólatra e abusivo, ele foi o responsável pela fuga de todos, deixando Kya sozinha no mundo. É diante dessa solidão que precisa aprender a enfrentar a natureza e interagir com a sociedade enquanto sobrevive, a ficar pela própria sorte.

No presente, quando já na casa dos vinte anos, um crime acontece e desola a cidade: o corpo de Chase Andrews é encontrado sem vida nos arredores torre de incêndio, perto do pântano. Ele era aquele tipo de garoto que todos amavam; um astro popular e exaltado por onde passava desde criança. As investigações da polícia sempre levam até Kya, mas será que ela realmente matou Chase ou tudo o que aponta para ela foi formulado com base em preconceitos criados pelas pessoas da cidade conforme a garota crescia?

A alternância temporal é uma forma de se aprofundar nisso e criar expectativa pela incerteza quanto à verdade. Ao começar pela infância de Kya, por morar em um cabana no pântano, na parte mais remota e considerada inabitável da cidade, sofre um afastamento social intenso. O contexto é o início dos anos 1950, com um cenário limitado de pessoas com hábitos limitados. Por isso, chamavam Kya de “menina do brejo” e a renegavam. Ela foi apenas acolhida por Mabel e Pulinho, um casal que tinha uma loja no canal, e que comprava os peixes que a garotinha pescava para vender e conseguir dinheiro para alimentação e sobrevivência ao longo dos anos.

Em meio a isso, conhece Tate, antigo amigo de um de seus irmãos. Ambos experimentam o amor juntos, ainda enquanto Kya administra seu medo das pessoas pelos traumas passados. O que os une é a paixão que cultivaram pela natureza, que se amplia a um amor que têm um pelo outro. Em uma narrativa rica e detalhada, as descrições sobre o ambiente e os animais dão um toque único às paisagens, que se fixam na mente com clareza. Rios límpidos, céus coloridos, mares cristalinos, animais em sua mais pura diversidade e belas árvores locais… todas essas pequenas coisas se tornam a família da garota, acolhendo-a com o carinho que ela nunca havia recebido antes. De certa forma, Tate também se identifica com essa relação, o que fortalece a conexão entre eles.

Com o preconceito enraizado durante anos por grande parte dos moradores daquela pequena cidade localizada na Carolina do Norte, Kya ficou isolada em seu canto, escondida entre a coleção de penas e os desenhos deslumbrantes que faz da beleza ao redor. Anos mais tarde, já no fim dos anos 1960, ela ainda é algo espectral, como um fantasma que assombra as “pessoas boas” da cidade com a “selvageria” de quem não cresceu adequadamente em sociedade — apesar de ter tentado. Foi à escola algumas vezes, tentou fazer amigos, buscou um pouco de exílio do vazio que era viver escondida na natureza após ser abandonada pela família e rejeitada por todo o restante — com ilustre exceção de Mabel e Pulinho.

Conforme a investigação sobre a morte de Chase é intensificada no presente, o passado de Kya enquanto cresce é revelado gradativamente. O paralelo deixa a resolução do homicídio incerta e é aí que está a parte instigante da leitura: é curioso não ter certeza sobre nada e desfrutar do amadurecimento da garota Clark enquanto luta pela própria sobrevivência e contraria todas as fatalidades.

Com uma escrita minuciosa, paisagens vibrantes, uma construção narrativa de personagens muito bem criada e um suspense que se estende até os últimos segundos sem deixar de prender a atenção, Um lugar bem longe daqui é um abraço quente aos apartados. É um consolo àqueles que atravessaram a vida apesar dos pesares e um mergulho no transcorrer dos dias e no conhecimento das novas versões de Kya enquanto se desenvolve, amadurece, entende mais sobre si e sobre o mundo. Enfrenta tantas coisas e desafia tantas probabilidades que, ao mesmo tempo que é uma jornada triste e solitária, a possibilidade de um final agradável oferece uma gota de esperança indispensável depois de tantas batalhas.

Para aqueles que gostam de leituras melancólicas com um tom de mistério, mas sem um quê policial ou psicológico acentuado, e que também buscam por uma escrita detalhista e poética sem grandes enfeites, esse drama é uma boa escolha. Com uma protagonista solitária, Kya abraça o vazio ao qual se acostumou como sua principal forma de sobrevivência, ressaltando que, por grande parte da vida só tem a si, mesma e aos segredos perdidos na natureza da própria existência. A resolução do crime é apenas um gancho narrativo que impulsiona a curiosidade, mas é acompanhar como espectador a vida dessa jovem em sua jornada de formação que torna essa uma leitura tão singular.

Apesar de ser uma leitura impressionante que se mostrou capaz de atingir milhões de pessoas, é importante destacar que, com a popularização da obra através do filme, diversas denúncias foram direcionadas à autora, Delia Owens, que ressaltam seu envolvimento em uma acusação de homicídio durante a época na qual viveu na Zâmbia, em 1996. Veículos como o jornal The New York Times e The Atlantic, além da revista Time redigiram reportagens recentes sobre o assunto . Para a leitura em português, há um texto na íntegra anexado, pelo site Terra. O caso não foi muito noticiado pela mídia brasileira. Antes de ler o livro, é indispensável estar ciente das polêmicas nas quais a autora está envolvida para que, caso prossiga com a leitura, essa seja crítica e consciente.

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