“Força”, “coragem” e “agressividade” são palavras que compõem o léxico do que muitas gerações entendem por masculinidade. Do outro lado, ideias como “cuidado”, “sensibilidade” e “emoção” são associadas ao gênero feminino. Gerações como as de nossos pais e avós, provavelmente passaram a vida ouvindo que, na dinâmica de um lar, o homem deve ser o provedor e a mulher responsável pela harmonia doméstica. A ascensão de mulheres a cargos de poder é relativamente recente e ainda somos minoria em altos postos, bem como em profissões que não são consideradas “femininas”.
Graças às ondas feministas iniciadas no século passado, as mulheres conquistaram o direito ao voto, à educação formal, direitos trabalhistas, participação política e equidade dentro das empresas. Por mais que, na prática, essas conquistas ainda não estejam ocorrendo amplamente e ainda tenhamos muito o que reivindicar, a consciência da sociedade, de forma geral, tem caminhado de forma a não aceitar mais a discriminação por gênero. Em outras palavras, discursos que tratam a mulher com inferioridade se tornaram inadmissíveis entre líderes políticos, executivos, na mídia, no meio acadêmico e nos comerciais.
Através de muita luta, o feminismo tem conseguido promover esse debate e cada vez mais mulheres não abrem mão de estar onde bem entenderem. Mas, como ficam os homens nessa equação?
Vítimas ou culpados? Os efeitos do patriarcado na vida dos homens.
Enquanto muitos homens sabem da posição de privilégio que ainda ocupam na sociedade e lutam para tentar mudar isso, sendo aliados das mulheres e trabalhando para conscientizar outros homens; existe um grande grupo de homens que se ressentem das conquistas que as mulheres obtiveram nas últimas décadas. Para eles, os homens atualmente estão em posição desfavorável na sociedade e as mulheres, por essência manipuladoras e sentimentais, são responsáveis por responsabiliza-los de todos os problemas do mundo.
A existência dos chamados grupos “masculinistas” vem sendo muito debatida nas redes sociais recentemente desde que um vídeo viralizou na internet brasileira no último mês. No corte, retirado de um videocast, o coach Thiago Schutz ensina homens a não serem manipulados pelas mulheres. Ele reforça que os homens devem se impôr e não ceder às vontades das mulheres.
Thiago é dono de uma página no Instagram chamada “Manual Redpill”. Os redpills são um nicho específico dentro do termo guarda-chuva das teorias masculinistas (ver anexo). Em resumo, o termo é uma referência a uma cena do filme “Matrix”, onde o protagonista Neo tem de escolher entre tomar uma pílula azul ou vermelha. A pílula azul faz com que ele permaneça “cego” às estruturas que fazem a sociedade funcionar. Já a vermelha o permite enxergar a realidade como ela é, e ver o mecanismo que nos controla.
Os redpills, portanto, seriam aquele grupo que “acordou” para a realidade, e a realidade é que mulheres estão o tempo todo manipulando os homens para que consigam o que querem. O homem redpill não cai nesse tipo de manipulação. Ele se vê como parte de um grupo marginalizado na sociedade.
Por mais esdrúxulo que esse pensamento possa parecer aos setores mais progressistas da sociedade, o ressentimento de muitos homens com os tempos em que vivemos é algo que já chama a atenção há bastante tempo. Uma matéria da BBC de 2012 traz à tona o “masculinismo” e quais as principais reivindicações dos ativistas que lutam pelo Movimento dos Direitos dos Homens.
O objetivo deste artigo não é explicar com detalhes o que cada vertente do masculinismo prega. Tampouco pretendo trazer aqui um perfil do “Calvo do Campari” -apelido que Tiago Schultz recebeu na internet após o vídeo viralizado. A ideia aqui é entender as raízes desse profundo ressentimento que move o masculinismo como um todo. E trazer a questão: é possível validar esses sentimentos sem cair na misoginia?
Um dos materiais mais completos -e surpreendentes- a respeito deste tema é o documentário “The Red Pill”, produzido e dirigido pela cineasta norte-americana Cassie Jaye. No longa lançado no ano de 2017, Cassie, uma feminista convicta, assume a missão de conversar com ativistas de grupos pelos direitos dos homens. O que Cassie não esperava é que, ao fim das gravações, ela mesma estaria questionando o seu feminismo e concordando com diversos pensamentos desse grupo.

Isso acontece porque as histórias contadas por essas pessoas são… verdadeiras. O filme traz diversas cenas onde ativistas pró-direitos dos homens tentam discursar, abafados por gritos de militantes feministas e LGBT’s. Enquanto são chamados de fascistas, esses homens (e mulheres!) trazem dados indiscutíveis. Entre eles, que os homens representam 99,9% dos mortos em combates, 94% dos mortos em acidentes de trabalho, 76% das vítimas de homicídio e 75% dos suicídios são de homens. Esses dados dizem respeito aos Estados Unidos.
Junto às estatísticas, o documentário traz as principais bandeiras defendidas pelos MDH. Entre as principais bandeiras, está a alienação parental. O filme traz relatos comoventes de pais que foram afastados de seus filhos pelas mães que, com o devido aparato jurídico, sempre têm a preferência quando o assunto é o cuidado da prole.
Outra reivindicação é que os homens também são vítimas de violência doméstica. Embora o número de homens e mulheres vítimas de agressão por parte de seus parceiros seja relativamente equilibrado, os EUA contam apenas com UM centro de acolhimento destinado a homens. Isso seria, na visão dos ativistas, discriminação de gênero.
O próximo aspecto diz respeito à descartabilidade de corpos masculinos. Ilustrada pela famosa frase “mulheres e crianças primeiro!” entoada durante acidentes e catástrofes naturais – quem lembra da cena de Titanic onde os homens são os últimos a entrar nos botes salva-vidas?- é um exemplo da maneira como naturalizamos a morte de homens.
Por fim, a maneira como os homens historicamente tiveram a obrigação de prover para o lar e a família tirou deles a opção de deixar empregos dos quais não gostavam e viver a vida que gostariam. Além, é claro, da enorme pressão psicológica por trás desta demanda.
O argumento, portanto, é o de que os homens também são vítimas do patriarcado. As delimitações de gênero existentes na sociedade prejudicam tanto mulheres quanto homens, mas apenas o primeiro grupo tem sua luta legitimada.
E aí? Não faz sentido?
Quando a miopia convém
Embora a narrativa seja muito sedutora, ela ignora que todos os problemas citados foram causados por homens. Vamos voltar ao início do texto, onde citamos que a maior parte dos tomadores de decisão e líderes mundiais ainda são homens. Os homens são a imensa maioria das vítimas de homicídio, mas também são a maioria dos homicidas. A manutenção dos valores patriarcais que levam ao adoecimento mental e ao suicídio de homens, é feita, em grande medida, por homens. As leis que tornam o serviço militar obrigatório nos Estados Unidos foram desenvolvidas por homens. A quantidade massiva de homens em trabalhos precarizados e de risco é algo questionado, mas não questionamos por que esses trabalhos ainda existem em pleno século XXI.
O documentário cai diversas vezes na retórica das feministas raivosas versus. homens ponderados reforçando a ideia de que mulheres são seres mais emocionais. Mas apesar das falhas lógicas no raciocínio defendido pelas teorias masculinistas, elas têm uma grande capacidade de cooptar adeptos porque, no fim das contas, elas fazem sentido. E são explicadas com mágoa e paciência por “vítimas” deste sistema, enquanto sofrem tentativas de silenciamento por progressistas enfurecidos.
E nesse ponto, voltamos à pergunta inicial: como validar os sentimentos deste grupo sem subverter a lógica e culpabilizar as mulheres?
No Brasil, os movimentos masculinistas que mais se destacam na internet são aqueles que se afastam do véu da razoabilidade e promovem ódio explícito às mulheres. Enquanto os ativistas entrevistados pela Cassie Jeye legitimam seu discurso ao se preocupar com a saúde e o bem-estar das próximas gerações masculinas, as páginas brasileiras se resumem a ensinar homens a não serem “enganados” por mulheres no âmbito amoroso. Enquanto isso, o país registra recordes seguidos nos índices de feminicídio.
Podemos dizer, então, que aqui o buraco é mais embaixo. O masculinismo à brasileira não tenta sequer parecer ponderado. É um verdadeiro campo de batalha onde os homens se veem no direito de ocupar a posição que ocupam e precisam se munir de ferramentas para não perder esse domínio.
O fato de os ativistas masculinistas estarem mais preocupados com possíveis traições no campo amoroso do que com os problemas que os homens realmente enfrentam, diz tudo sobre a visão de masculinidade que têm. E adivinhem só qual grupo está realmente preocupado em combater visões de masculinidade que são prejudiciais aos homens? Ele mesmo, o feminismo.
Outras masculinidades possíveis
Diferentemente do que pregam os conservadores sobre o movimento, as feministas não estão preocupadas em fazer os homens pagarem pelos anos de dominação sobre as vidas e corpos das mulheres. O feminismo busca combater certas visões de masculinidade por entender que essas visões são cruéis com todos os envolvidos.
A verdadeira “pílula vermelha” é aquela que revela aos homens quem são os verdadeiros culpados pela estrutura que os aprisiona: eles próprios. Toda vez que um homem reforça um ideal de masculinidade tóxica, isso se volta contra eles na forma de discursos que os impedem de lidar com as emoções, de se expressarem como desejam, de ter o ofício que querem e, em última instância, os compelem a agir com violência. As mulheres serão sempre as maiores vítimas deste sistema, mas os homens também se prejudicam. Quando você soca o rosto de alguém, a pessoa pode perder os dentes mas o seu punho também fica machucado. Lidar com a causa da ira por trás do soco não é a saída mais fácil, mas é a única que não fere ninguém.

Embora a sociedade brasileira esteja entre as mais machistas do Ocidente, há luz no fim do túnel. Na contramão dos grupos masculinistas, vem crescendo o número de homens dispostos a romper com o ciclo da masculinidade tóxica. Eles entendem que “força” e “cuidado”; “coragem” e “sensibilidade”; “agressividade” e “emoção” não se anulam, mas coexistem dentro de todos nós, independentemente do gênero. Para entender melhor como esses grupos de homens se organizam, em 2020 foi lançado o documentário “O Silêncio dos Homens”. No filme, homens e mulheres falam sobre como a reprodução do machismo moldou suas trajetórias de vida. Muitas vezes, esses comportamentos não são intencionais, mas são reproduzidos pois são entendidos como uma única masculinidade possível.
O documentário está disponível no YouTube, na página “Papo de Homem”. O site é organizado por homens que olharam para o mundo e para si mesmos. Eles decidiram romper estruturas que os faziam mal, às custas de conversas difíceis e escutas atentas.
A pílula vermelha é amarga, mas libertadora.
