O Homem, o Bruxo, o Defunto

Texto por Felipe P. Marcondes

Por que ler Machado de Assis?

Inquieto leitor, pediram-me que tratasse contigo do porquê deverias ler a obra de Joaquim Maria Machado de Assis. Ao final dessas mal traçadas linhas, verás (ao menos é este o meu intento) que a pergunta é bem outra: Como não ler Machado de Assis!? Este espaço, apesar de muito estreito para tamanha matéria, e essas garatujas, embora fugazes demais para dar conta dela satisfatoriamente, podem proporcionar-te não menos que um vislumbre desse autor-abismo e da importância de seus escritos, pois, como diria um efêmero poeta nosso, uma folha bem escrita, ainda que pequena, tem muito valor [1].

I – O Homem

            A vinte um de junho de mil oitocentos e trinta e nove, nascia, no pobre morro do Livramento, em casa de agregados anexa à chácara do cônego Felipe, o franzino, doentio, tímido e gago Joaquim. Era filho de Francisco José de Assis, pintor e dourador, e de Maria Leopoldina Machado de Assis, lavadeira na casa do senhorio. Aquele, na realidade, à inclinação literária do filho não via com bons olhos, supondo que o ofício de homem das letras conservá-lo-ia na miséria. Sua infância, parte mais nebulosa de sua recatada existência, transcorreu no arruar traquinas com os companheiros de mesma idade. Foi quando começou a ter os primeiros sinais do mal que acompanhá-lo-ia e atormentaria por toda a vida, a epilepsia.

            Ainda bem pequeno, morreu-lhe a mãe. Viúvo, Francisco de Assis casou-se com uma mulata, Maria Inês. Esta, com as poucas letras que possuía, assistia aos estudos do enteado, ensinando-lhe todas as noites, às escondidas de Francisco, aquilo que sabia. Parece ter sido ela quem arranjou que o forneiro imigrante da Madame Gallot (dona de padaria na rua S. Luiz Gonzaga) ensinasse o francês a Joaquim – posteriormente, aprenderia ainda o inglês e o alemão. Frequentou a escola primária, mas após esses parcos primeiros estudos, será autodidata, recorrendo a centros literários e relações ilustradas para lograr conhecimento e livros – tome-se, como exemplo, o Gabinete Português de Leitura e a loja de livros do mulato Francisco de Paula Brito que frequentava assiduamente. Sem empregos fixos, e necessitando conquistar o pão diário após a morte do pai, foi vendedor de balas e sacristão na igreja da Lampadosa (o que é convenção, pois não encontrou-se seu nome nos registros da igreja) até que, aos dezessete anos, tornou-se aprendiz de tipógrafo na Imprensa Nacional. Lá permaneceu dois anos (1856-1858), sempre lendo pelos cantos, com os bolsos recheados de livros – conduta que, aliás, garantiu-lhe a simpatia e proteção do então diretor da Imprensa, Manoel Antônio de Almeida, autor de Memórias de um sargento de milícias.

            Trabalhador dedicado, foi também caixeiro e revisor de provas da Livraria de Paula Brito (responsável pela publicação de alguns dos primeiros versos de Machado, lançados em sua revista bimensal, a Marmota Fluminense); colaborador e revisor no Correio Mercantil; redator, aos 21 anos (1860), do jornal de seu amigo, Quintino Bocaiúva, Diário do Rio de Janeiro. Neste, passou a produzir crônicas semanais e crítica literária (valendo-se sempre de pseudônimos como Manassés, Eleazar, Dr. Semana, Jó, Gil, etc.) , antes de ser destacado da redação para atuar como representante da folha junto ao Senado – talvez sua produção mais larga seja essa, a das colaborações em jornais e revistas,  e um dos principais motivos da vulgarização de sua obra, haja visto que, levando em conta só o período de sua mocidade, escreveu para quase todos os veículos impressos de então: O Futuro, A Marmota, Diário do Rio, Correio Mercantil, Jornal das Famílias, Semana Ilustrada, Cruzeiro, O Globo, Almanaque Garnier e paro por aqui, pois a lista é extensa. Foi ainda diretor de publicação no Diário Oficial (a partir de abril de 1867), primeiro oficial nomeado para a reformada Secretaria de Agricultura(dezembro de 1873), tornando-se, nesta, Chefe de Seção, por decreto da Princesa Isabel, em dezembro de 1876; oficial de gabinete do Ministro da Agricultura, Buarque de Macedo, em 1880; diretor da Diretoria de Comércio em 1889 (seria dispensado desta em fins de 1897); presidente da Academia Brasileira de Letras em 1896; secretário do Ministro da Viação, S. Vieira, em 1898 e Diretor Geral da Contabilidade do Ministério da Viação em 1902.

            Como se vê, labutou, sem nunca descuidar de sua vocação literária, galgando a melhora de suas condições materiais e os degraus socioeconômicos da sociedade brasileira oitocentista – auxiliado, sem dúvidas, pelo círculo de relações e amizades que cultivou ao longo de toda a vida: dentre vários, citemos Francisco Otaviano, Casimiro de Abreu, José de Alencar, Joaquim Nabuco e Graça Aranha. Apesar disso, foi modesta sua existência, como modesto era seu temperamento. Repudiando toda publicidade que não dissesse respeito aos seus textos, era avesso à confidências (tomemos sua correspondência como prova: sucinta e objetiva, atenuado um pouco esse modo de escrita ao fim da vida, quando inicia alguma revelação, interrompe-a, ora justificando que não deseja enfadar seu interlocutor, ora suspendendo-a simplesmente) e jamais almejou, quem o diz é o amigo José Veríssimo, que suas humildes condições de origem servissem para realçar-lhe a estima com o público. Exteriormente, como acertadamente pondera Antonio Candido, sua vida não excedeu em sofrimentos aos de toda gente (aos 29 anos já tinha feito um nome como jornalista e havia recebido o Título de cavaleiro da Ordem Rosa), nem aos de seus semelhantes mestiços (que, levadas em consideração as condições dessa realidade histórica, no Império Liberal alcançaram postos representativos). Sua verdadeira luta não era exterior ou estrepitosa, como as polêmicas que lidava com altivez: ela era silenciosa, invisível, interior. Era metido consigo mesmo, com seus livros, refletindo e esculpindo sua arte, com vagarosa paciência, mas continuadamente – Um sonho… As vezes cuido conter cá dentro mais do que a minha vida e o meu século… Sonhos… Sonhos [2].  

II – Bruxo ou Defunto?

            É verdade, sua biografia eram os seus livros, a sua arte era a sua prosápia [3].   A primeira publicação de Machado de que temos notícia, foi o soneto à Dona Petronilha, lançado em 1854 no Periódico dos Pobres, interrompendo-se sua atividade intelectual apenas com a eventualidade de sua morte, em 29 de setembro de 1908. Cinquenta e quatro anos de uma carreira multifacetada que trabalhou a poesia (Crisálidas, 1864; Falenas, 1864; Americanas, 1875; Ocidentais, 1901; Outras Relíquias, 1920; Novas Relíquias, 1932), a crônica, a crítica literária, a dramaturgia (Hoje Avental, Amanhã Luva, 1860; Desencantos, 1861; O Caminho da Porta, 1863; O Protocolo, 1863; Quase Ministro, 1864; As Forcas Caudinas, 1865/1956; Os Deuses de Casaca, 1866; O bote de rapé, 1878; Tu, só Tu, Puro Amor, 1880; Não Consultes Médico, 1896; Lição de Botânica, 1906), a tradução, a arte do conto (Contos Fluminenses, 1870; Histórias da meia-noite, 1873; Papéis Avulsos, 1882; Histórias sem data, 1884; Várias histórias, 1896; Páginas Recolhidas, 1899; Relíquias da Casa Velha, 1906; Outras Relíquias, 1920; Novas Relíquias, 1932) e o romance (Ressurreição, 1872; A mão e a Luva, 1874; Helena, 1876; Iaiá Garcia, 1878; Memórias Póstumas de Brás Cubas, 1881; Casa Velha, 1885; Quincas Borba, 1891; Dom Casmurro, 1899; Esaú e Jacó, 1904; Memorial de Aires, 1908).  

            Não é só multifacetada sua produção, é polissêmica também. Ler Machado de Assis é como jogar uma partida de xadrez (no que, diga-se de passagem, ele era exímio: além de ser o primeiro brasileiro a publicar um problema de xadrez, no primeiro torneio de xadrez disputado em nossa terra, 1880, obteve ele o terceiro lugar): quando parece que essa seguirá um curso natural e esperado, um movimento muda todo o cenário, tornando-se imprevisível. Mestre do humor, narrador que conversa com o leitor, colocando-se entre este e a narrativa, tratou de uma miríade de temas: da graciosidade romântica à vaidade; da traição, da crueldade, da tolice, do cinismo, da insânia, do pessimismo benevolente, do ceticismo e da irônica falta de sentido de nossa existência, da doença que corrói o corpo e subjuga o espírito, dos tipos, costumes e idiossincrasias brasileiras do oitocentos, porém, e sobretudo, tratou da alma humana. Trata a dor e a ilusão com gracejos, ensinando-nos a não levar a vida muito a sério. Nele, a fantasia torna-se verossímil e a realidade é retratada com a acuidade e penetração de observador atento, meticuloso. Tudo isso com uma linguagem prosaica, insinuativa e desabusada; é vernácula e artificiosa sem ser pedante, como que falando ao pé do ouvido do leitor, provocando-o, zombando-o, dissecando-o.

            Quando sua esposa, a portuguesa Carolina, morreu em outubro de 1904, sentia, atesta-o o Soneto à Carolina (1906), que a melhor parte de sua vida acabara, que já era meio defunto – era irmã do editor da revista O Futuro, Xavier de Novaes, que se opôs ao relacionamento dos dois por ser Machado mulato. Companheira fiel, lia para ele jornais e livros quando este teve uma enfermidade nos olhos e passou-lhe para o papel uma narrativa que este ditou à ela durante sua convalescença, eram as Memórias Póstumas. A frágil saúde de Machado foi debilitando-se cada vez mais, ainda assim escreveu e viu seu último livro sair a prelo, o comovente Memorial de Aires – sabia e dizia que seria o derradeiro, estava cansado. Foi, além da epilepsia e da doença dos olhos, acometido por um câncer na língua que atacava também a garganta; sentia dores reumáticas – contudo, não gemia de dor, pois não queria incomodar quem o cercava. Era cuidado com muito zelo pelas amigas da esposa e pelos companheiros que assistiram-no até o leito de morte. Na noite em que expirou, conta Euclides da Cunha em artigo lançado no Jornal do Comércio logo no dia seguinte, que estando reunidos ele e outros amigos do autor na sua casa em Laranjeiras, um garoto desconhecido de cerca de 18 anos bateu, cauteloso, à porta. Não conhecia o mestre, mas havia lido-o, queria vê-lo, pois sabia pelos jornais que seu estado era grave. Foi conduzido ao quarto do doente, e, sem dizer uma palavra sequer, ajoelhou-se, tomou-lhe a mão, beijou-a e aconchegou-o brevemente ao peito. Saiu sem dizer palavra. Veríssimo perguntou-lhe o nome, era Astrojildo Pereira. No entanto, tem uma segunda e representativa identidade esse garoto, soube-a entrever o próprio Euclides: somos nós, a posteridade.  Machado morreu às 3:45 a.m. do dia 29 de setembro de 1908. Tornara-se autor-defunto. Morreu o homem, vive a obra. Oh, aflito leitor, uma vida e obra inteiras resumidas à essas poucas e pobres palavras… Sinto que cometi um crime! Faça-me um favor, sim? Apanhe essa folha e queime-a.  


[1] Carta de Álvares de Azevedo a Domingos Jacy Monteiro, Rio, 09 de setembro de 1850. In: Álvares de Azevedo – Obra Completa. Editora Nova Aguilar S.A., Rio de Janeiro, 2000.

[2] Tu, só Tu, Puro Amor, 1880, Machado de Assis.

[3] J. Veríssimio, História da Literatura Brasileira, p. 182 (1915).

Destaque

Conheça o artista: Thamires Ribeiro

Texto por: Alexandre Araujo.

Nesta semana, o quadro ‘Conheça o Artista – FRENEZI X Projeto Orgulharte’ chega ao fim e apresenta a última artista do projeto universitário carioca em parceria com a revista: Thamires Ribeiro, de 21 anos. 

Nascida em Minas Gerais e atual moradora de São Paulo, a artista é formada em maquiagem profissional. Contudo, as práticas e habilidades não se resumem apenas nisso. Conheça mais sobre a mineira. 

O interesse e admiração por maquiagem vem desde muito cedo, quando ainda era apenas uma criança. Thamires conta que sempre foi fã da cantora Lady Gaga e admirava a forma em que a artista se expressava de forma autêntica e segura de si mesma. “Eu amava todas as suas maquiagens excêntricas e chamativas”. Já atualmente, a inspiração vem de mulheres empoderadas, além de Tom Savini, um famoso maquiador, técnico em efeitos especiais de cinema, ator e cineasta norte-americano.

Como nem tudo são flores, a maquiadora enfrentou diversos desafios ao longo desses anos como profissional. Ela conta que o maior desafio foi no começo da pandemia, em 2020. “Foi um momento muito complexo onde eu enfrentei a síndrome do pânico e recebi meu diagnóstico de transtorno bipolar. Eu não conseguia clientes por não ter condições de trabalhar e, além disso, as clientes não tinham razões para me contratar, já que não tinham eventos durante a pandemia”, contou. 

Em contrapartida a isso, a jovem relatou que mesmo diante às barreiras e dificuldades, percebeu que é capaz de ser uma grande maquiadora. “A maquiagem, pra mim, é a minha forma de me expressar”, completou.

Confira a entrevista com Thamires Ribeiro:

  1. Quem é Thamires Ribeiro?

Sou formada em maquiagem profissional, mas também faço maquiagens artísticas, como a criação de personagens, Drag Queens, maquiagem de terror e sfx (próteses cênicas e efeitos especiais).

  1. Acha que a sua sexualidade interfere ou pode interferir futuramente nos seus planos/carreira? 

Acredito que minha sexualidade interfira em algumas questões. Por ser bissexual, a sociedade leva em conta de que sou apenas uma pessoa “confusa”. Alguns clientes já cancelaram comigo assim que souberam da minha sexualidade. Segundo eles, eu iria dar em cima.

  1. A indústria brasileira da sua área, na sua concepção, vem acolhendo a diversidade?

Acredito que, por ser um trabalho na área da beleza, o acolhimento da diversidade seja um pouco “aceito”, já que existem muitas pessoas LGBTQIAP+ trabalhando na área.

  1. Apesar de todas as circunstâncias, você pretende seguir com a carreira de maquiadora ou existe um plano B profissional?

Eu pretendo continuar com a carreira e tenho objetivos de trabalhar fora do país.

  1. Quer deixar uma mensagem para os nossos leitores?

Não tenha receio de continuar a fazer algo que gosta por medo de não ser aceito. Lembre-se, você se aceitar é um ótimo começo.

  1. Onde podemos conhecer mais sobre o seu trabalho?

No meu instagram, @succubgirl.

Virada Cultural: a importância de ocupar espaços públicos

Nesta última sexta- feira (20), a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo divulgou a programação oficial da Virada Cultural que ocorre neste final de semana, nos dias 28 e 29 de maio. O evento anual é oferecido pela prefeitura do município de São Paulo desde 2005, sendo inspirado no festival parisiense Nuit blanche que ocorre também anualmente desde 2002. A Virada Cultural tem o propósito de promover diversas áreas da arte 24h pela cidade: música, dança, peças teatrais, manifestações populares, exposições de arte e história.

Este ano, o objetivo também é descentralizar o evento, levando-o para outras regiões espalhadas pela cidade que não apenas o Centro Histórico e Centro Novo. Com isso, discute-se a importância da acessibilidade cultural para além da gratuidade do evento, a proximidade com o público se dá, sobretudo, com a ocupação de espaços próximos a ele. A descentralização do evento vem sendo recente, considerando também a realização de forma online nos últimos dois anos devido à pandemia da COVID-19. 

Ocupar esses espaços públicos é essencial para a manutenção da democracia, uma vez que, atinge uma maior diversidade de audiência quando é facilitado o acesso aos palcos que estão em todas as regiões da cidade e também com o consequente aumento da variedade de gêneros musicais e atividades para todos os gostos.

Além disso, há como questão econômica uma grande movimentação para pequenos empreendedores que se locomovem para atender ao público, assim como o comércio em volta dos espetáculos. A democratização da arte e a utilização desses espaços públicos como meio de promoção cultural são de extrema importância para que a cidade se mantenha viva e com propósito. Apesar da crescente violência metropolitana, a manifestação artística não deixa de ser um ato de resistência popular que deve ser mantido, possibilitando a esperança de transformação social.

 Serão sediadas mais de 300 apresentações com grandes nomes, como Ludmilla, Luiza Sonza, Criolo e Glória Groove. Oficinas literárias e saraus serão também grandes atrativos pelas bibliotecas da cidade. Os palcos estarão espalhados por todas as Zonas da cidade e receberam nome indicativo da região:

Zona Sul: 

  • Palco Campo Limpo | LIBRAS
  • Palco Rio Diniz
  • Palco M’Boi Mirim LIBRAS
  • Palco Piraporinha
  • CC Grajaú. Rua Prof. Oscar Barreto Filho, 252.

 Zona Leste:

  • Palco Itaquera | LIBRAS
  • Palco Ribeirão. Av. Nagib Farah Maluf, s/n (Conjunto Habitacional José Bonifácio)
  • Palco São Miguel Paulista | LIBRAS
  • Palco Itaqueruna
  • CC Cidade Tiradentes | LIBRAS
  • Palco Penha

Zona Norte:

  • Palco Parada Inglesa | LIBRAS
  • Palco  Luiz Dumont Villares
  • Palco Freguesia do Ó | LIBRAS
  • Palco Rio das Pedras

Zona Oeste:

  • Palco Butantã | LIBRAS
  • Palco Pirajussara
  • CC Butantã

Centro:

  • Palco Viaduto do Chá | LIBRAS
  • Palco Praça das Artes
  • Festa Praça das Artes. Boulevard São João, 281
  • Palco Praça Ramos
  • Arena Vale, em frente ao Prédio dos Correios

A programação completa com todos os endereços e horários pode ser encontrada no site oficial da Virada Cultural (link). Para mais informações em tempo real acesse o Instagram da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo (link).

Por que ainda nos importamos como Shakespeare?

Texto por Victor Haruo

Uma homenagem ao Grande Mestre

406 anos se passaram entre sua morte e os dias de hoje, porém, sua relevância permanece presente no século XXI. O alcance dos sonetos do dramaturgo é de uma extensão incalculável, com pessoas do mundo todo, de todas as esferas, que leram e assistiram suas peças, ou acompanharam suas adaptações para as telas do cinema e televisão.

Todos os dias contactamos sua poesia; os teatros se enchem com suas performances, os acadêmicos ainda analisam seus textos e sonetos, leitores criam páginas com as mais prolíficas notas de rodapé espalhadas pelo tempo. Obstante sua contribuição como intérprete da condição humana, ele também é patrono da língua inglesa como a conhecemos; a produção literária Shakespeariana inclui a criação de mais de 1700 palavras, utilizadas até hoje. É algo incrível como uma pessoa possa ter tamanha influência em uma língua. O que Shakespeare nos ensinou é que o sucesso advém da criatividade, jogando com a linguagem e encontrando novos meios de comunicação. Shakespeare foi “redescoberto”  no Romantismo do século XIX, inspiração para aqueles grandes romancistas e poetas do fin de siècle como Victor Hugo, Verlaine, Rimbaud, Balzac, Flaubert, Dumas, entre outros.

 Sua dramaturgia é de suma importância na história artística da humanidade, com seus ecos ressoando inclusive — ainda atualmente — também, na arte brasileira. O teatro shakespeariano atracou nas terras brasileiras em 1835, por meio de apresentações de companhias estrangeiras. Todas as peças encenadas eram de traduções portuguesas feitas do francês ou do italiano, geralmente as pátrias dos atores. Alguns escritores brasileiros traduziram o dramaturgo para o português, como Machado de Assis, Álvares de Azevedo e Olavo Bilac. O próprio Machado  revolucionou a literatura brasileira devido, também, à importantíssima contribuição dramática da influência Shakespeariana aos seus romances. Por consequência, não foi pouca a sua influência na nossa literatura tupiniquim, incluindo nesta lista praticamente todos os nomes que encabeçaram o milieu da alta produção literária brasileira no século XIX até a transição do século XX.

Desde então, não há como falar em literatura transformadora, sem incluir Shakespeare como pedra fundamental. Quem de nós não conhece a famosa indagação do príncipe Hamlet: “Ser ou não ser? Eis a questão”.

Esse é o diálogo mais declamado por todos os atores, no palco ou nas telas de cinema. Suas obras são mais atuais que as obras de qualquer outro dramaturgo, escritor ou cineasta contemporâneo,  já que seus versos penetraram profundamente na essência dos temas arquetípicos que permeiam toda a existência humana, onipresentes em quaisquer sociedades, e preenchendo todos os corações humanos, como vingança, orgulho, adultério, amor,  cobiça, magia, poder, sonhos, anjos e fantasmas. Atualmente, em um mundo de mudanças incessantes, onde todos os referenciais existenciais perderam suas bases, tais temas são, talvez, mais relevantes do que nunca.

Aqui está uma seleção de 2 títulos para despertar o interesse daqueles que buscam um ponto de partida:

1 – Hamlet: é a obra de Shakespeare que mais ganhou destaque. A tragédia é baseada num príncipe que busca vingar a morte de seu pai, com uma densa narrativa reflexiva sobre conflitos de família, amores, loucura e sanidade, filosofia, poder, moralidade e todas as circunstâncias da condição humana. O que define a legitimidade do nosso propósito? Os fins justificam os meios? Qual o ponto de tensão entre Direito e Dever? O que acontece quando nossos fantasmas ganham corpo e movimento?

Othello, 1951. Adaptação cinematográfica.

2 – Otelo: a peça estreou em 1604 e levou para os palcos um casamento inter-racial – assunto polêmico para a época!  É uma das mais comoventes tragédias shakespearianas. Por tratar de temas universais – como ciúme, traição, amor, inveja e racismo, ela pode ser ponto de partida para diversas reflexões e interpretações. Hoje em dia, a nossa sociedade é menos preconceituosa? A cor da pele e a nacionalidade de uma pessoa são motivos para exaltá-la ou diminuí-la? É possível listar formas veladas de preconceito comuns no dia a dia? No mundo atual, qual é o peso da aparência? Levamos muito a sério a opinião dos outros a nosso respeito? As postagens nas redes sociais transmitem a imagem do que realmente somos?

Todos os dramas da vida humana desfilam por seus versos como modelos da existência mais básica do que chamamos de humanidade. Munidas com um simbolismo profundo, as palavras de abertura do monólogo de Hamlet são um ótimo argumento para o debate de por que o trabalho de Shakespeare continua a ressoar em cada geração. Além disso, contribuem para a questão de por que ler os clássicos ainda é algo de suma importância. Em uma época de estímulos instantâneos, onde a arte tornou-se indissociável do mero entretenimento, todo e qualquer prazer contemplativo torna-se difícil de cultivar. Em uma época de estímulos de recompensas imediatas, colher os frutos de uma aventura dentro das florestas literatura, é algo  que demanda vontade e esforço.

Porém, tais aventuras valem cada página. Ler ou não Ler? Eis a Questão.