Devaneios

Acabei de me pegar sonhando acordada com uma vida que não é minha com pessoas que não conheço em lugares onde nunca estive. Eu faço muito isso. Geralmente é a maneira que escolho para lidar com problemas da minha vida extremamente real, concreta e palpável. Algumas pessoas podem achar isso meio triste, um pouco preocupante. “Pare de viver na sua cabeça”, eles dirão. Por um bom tempo, eu também pensei assim. Eu pensei que era uma tonta que tinha uma cabeça tão danificada que ficava inventando historinha na cabeça ao invés de prestar atenção na vida real. Acabei percebendo que isso não é necessariamente verdade. Sim, a vida pode ser difícil às vezes. Então, claro, posso buscar conforto em sonhos e pequenas fantasias bobas que crio. Por que isso seria errado?

É como uma pílula feliz para o cérebro – uma pílula de ilusão, pode ser. As ilusões às vezes são vistas como algo ruim, mas passei a amá-las. Se você pensar bem, eles são 50% da nossa vida. Se não fossem, a humanidade nunca teria avançado. As ilusões são uma ótima maneira de criar e inventar coisas novas. Eles são onde as ideias nascem. Não importa se elas acabarão se tornando realidade ou não, criá-las na sua mente é em si um ato de crescimento e aprendizado. Há muito o que aprender com seu cérebro delirante. Você pode aprender tanto, se não mais, com ele quanto com as experiências da vida real.

Claro, você deve ser capaz de encontrar um certo equilíbrio. Não pode simplesmente viver toda a sua vida na ilusão. Você não vai avançar ou retroceder; só vai ficar preso na mesmice. Confie em mim, eu já estive presa na mesmice da minha cabeça. Sonhar acordado pode ser quase como assistir a uma série de televisão: às vezes você não consegue parar. Você pisca e, de repente, passou o dia inteiro sem fazer nada além disso. Você tem que dar um jeito de se equilibrar antes de cair na toca do coelho. Essa é a parte complicada.

A vida é como uma máquina que nunca para – todas as peças precisam estar funcionando. A ilusão cria a realidade e a realidade cria a ilusão. Uma precisa fazer a sua parte para que a outra sobreviva. Pense nisso: seu cérebro precisa de referência para o sonho. Ele precisa ser alimentado com experiências e traumas e momentos especiais para que possa mastigar tudo e criar a gororoba que é um pensamento.

Vou te dar um exemplo. Alguns meses atrás, fui a um festival de música. Você pode apostar que passei pelo menos algumas horas depois deitada, com meus fones de ouvido, escutando música que eu gostaria de ter escrito e inventando meu próprio show imaginário. Imaginando-me como uma cantora pop apresentando todos os meus maiores sucessos para milhares e milhares de fãs gritando e dançando junto comigo. Como eu seria capaz de chegar a isso se não tivesse a experiência de ver um show como esse? Se eu não tivesse sido um daqueles fãs cantando junto com um artista que provavelmente uma vez sonhou acordado com aquele momento? A ilusão levou a sonhos que levaram a ideias que levaram à ação. Ou, um exemplo mais fácil. Sabe quando você sai do cinema depois de um filme e transforma aquele mundo todo na sua própria realidade imaginária? Já fez isso? Ou sou só eu com meu cérebro danificado e ilusório? Bom, se for, sorte a minha.

Para citar uma daquelas músicas que eu gostaria de ter escrito, go ‘round and ‘round and ‘round in the circle game. Não se sinta culpado ou envergonhado por sonhar acordado, eles são parte do motivo pelo qual você segue em frente.

Um pedido de desculpas

Imagem: [acervo pessoal de Cecília Young]

Não sei se isso fica óbvio só de olhar para a minha pessoa, mas morro de medo de ser alvo de uma crítica. Sei que quase todo mundo sofre com isso, mas no meu caso é um problema seríssimo que ultrapassa todos os limites da possibilidade. Quero que todo ser vivo no planeta pense apenas em coisas positivas sobre mim. A mera ideia de alguém não gostar da minha personalidade faz com que eu queira me esconder em um buraco e nunca mais sair. É por isso que sou tão tímida. Talvez seja por isso que tenho um senso de humor tão aguçado. Sei lá. Toda vez que falo isso para a minha terapeuta ela me diz que nem Jesus era amado por todo mundo. Eu não ligo. Eu quero ser amada por todo mundo.

Não estou sendo exagerada, esse é realmente um dos meus maiores medos. E, por causa disso, tento sempre não mostrar que julgo os outros. Não quero de jeito nenhum que o alvo do meu julgamento fique bravo, ou pior, CHATEADO. Odeio machucar pessoas. Não sei se é porque sou empática ou porque não quero que não gostem de mim.

Não vou mentir e falar que sou um anjo que nunca pensa nada negativo sobre alguém. Aquela mesma terapeuta já me contou que julgo os outros até demais por medo de que me julguem primeiro. Maaaaas faço isso silenciosamente. Eu julgo como se estivesse em uma missão hiper mega secreta do FBI.

Confio em pouquíssimas pessoas para abertamente compartilhar os meus julgamentos. Claro, posso às vezes soltar uns comentários que possam parecer como uma crítica alheia, mas é difícil me encontrar discorrendo com qualquer um sobre o que acho de tal pessoa. Nota: as minhas críticas e as críticas que aceito escutar dos outros são apenas sobre traços de personalidade e ações. Julgamentos da aparência ou história de vida de alguém são péssimos. É babaquice e odeio quem faz isso. Às vezes posso julgar uma escolha de roupa ou outra, mas apenas se estiver muito equivocada.

Voltando para o meu objetivo inicial: me desculpar. Ontem me senti bem maldosa. Não acho que a pessoa percebeu, mas fiquei culpada mesmo assim. Foi um momento bem vilã de um filme adolescente dos anos 2000, sabe? Vou pintar a cena.

Estava com uma amiga, que vou chamar de Z, no shopping. Tínhamos acabado de almoçar. Bom, não sei se almoçar é a palavra certa. Comemos entradinhas e sobremesas enquanto tomávamos Aperol. Depois disso, fomos para a livraria. Saímos as duas com exemplares do mesmo livro da Sally Rooney. Se você conhece as obras dela, vai entender o porquê do nosso julgamento ser tão contraditório.

A única coisa que podíamos fazer após toda essa aventura era tomar café. Ou melhor, mais um café. Já tínhamos tomado um expresso no restaurante, se minha memória não me falha. Conhecendo a gente, com certeza tínhamos tomado um expresso no restaurante. Fomos ao Starbucks.

No momento que chegamos, começou a cair um toró lá fora. Isso não é de nenhuma maneira importante para o pedido de desculpas, eu só gosto muito de chuva. Gosto do barulhinho (barulhão, nesse caso). Em um ato de extrema coragem e bondade com meu estômago, decidi não tomar mais um café. Z não teve o mesmo bom senso e pediu o mais novo drink do menu, Avelã Shaken Expresso. Foi nesse momento que erramos.

Na nossa frente, havia um casal. Já que estou tentando me desculpar aqui, só vou descrever eles como grudentos. No exato mesmo segundo, Z e eu nos olhamos com caras de puro desgosto. Sobrancelhas franzidas e nariz torcido, entende? Até com a máscara no rosto dava para claramente ver a expressão de nojo. Agora que acho importante lembrar que, ao mesmo tempo que isso estava acontecendo, ambas estávamos levando exemplares novinhos em folha de um romance da Sally Rooney na bolsa. Totalmente contraditório.

Bom, expressamos nosso julgamento pelas nossas faces e é isso. Ou melhor, pensei que ia ser só isso. O que não estava esperando é a menina do casal virando para gente alguns segundos depois. Achei que ela havia percebido, talvez sentido, nossa energia negativa. Estava errada. Ela abriu um sorriso que chegava até os seus olhos. Sabe aqueles tão amigáveis que te deixam até desconfortável? Pois é.

Aí, para piorar a situação, ela elogiou os nossos cabelos. A Z tem cabelos loiros avermelhados e eu estava com um penteado igualzinho da Pucca (tentativa falha do penteado da Princesa Leia). Enquanto Z contava que a sua inspiração foi Julia Roberts nos anos 90, começou quase um coro digno de tragédia grega na minha cabeça me chamando de babaca.

Poxa, fiz um olhar de NOJO para menina e ela é fofa comigo sem nenhum motivo. É foda. Me senti como a Regina George falsamente elogiando a saia de alguém. E como o balde de sangue de porco que foi despejado na Carrie bem depois de ela ganhar rainha do baile. E também como o Lando Calrissian quando ele entregou o Han Solo, a Leia e o Luke para o Darth Vader. Foi como se ela tivesse me carregado nas costas por uma colina só para a empurrar ladeira abaixo quando chegássemos no topo. Ou como se ela tivesse feito o trabalho em grupo inteiro sozinho e eu “esquecesse” de colocar o nome dela na hora de entregar para o professor. Péssimo. O que fiz foi péssimo e desnecessário.

E é por isso que venho aqui para pedir desculpas para a menina do casal grudento na fila do Starbucks. Te julguei cedo demais. É o seu namorado que é o cafona da relação, e não você. Espero que encontre o tom de tinta certo para também ter o cabelo da Julia Roberts nos anos 90 com um penteado da Pucca.

08h10 às 09h20, de segunda à sexta.

Imagem por Cecília Young

Tenho gostado de chegar mais cedo na faculdade. Minha aula só começa às 9h20. Saio de casa às 07h50. Caminho por uns vinte minutos e chego no campus. Aí me sento na praça e fico presente. Esse “presente” varia. Às vezes, eu leio. Ou escuto música. Escrevo, me encontro com a Lara ou com o Pedro… Varia. Mas sempre me sinto presente na vida, como se estivesse tocando em algo eletrizante. Estou viva.

            O que ando lendo é estritamente Joan Didion. Estou tentando estudar o seu modo de escrita para me inspirar nela no meu TCC. Que é esse ano. Que merda. Ignorando isso… O Ano do Pensamento Mágico, Noites Azuis, Rastejando até Belém. Me identifico com os relatos pessoais de Didion, me sinto menos sozinha. Se um dia conseguir colocar 1% da emoção que ela emite com as suas palavras nas minhas, vou ficar feliz. 

            Não sei se consigo definir que tipo de música escuto sentada lá na praça. O “mix relax” e “mix folk e acústico” do Spotify são dois que gosto bastante. Karen Dalton, Bob Dylan, Hozier, James Taylor, Vashti Bunyan, Maggie Rogers, Phoebe Bridgers… Esse tipo de coisa. Mas não é sempre isso. Por exemplo, tenho escutado Grimes obsessivamente – o exato oposto de relax, folk e acústico. Como disse, não consigo definir. Depende do que estou sentindo, qual é o tempo, que tipo de pessoa está ao meu redor etc. 

            Quando me encontro com a Lara, ficamos grande parte do tempo reclamando. Com humor, mas reclamando. Estamos com sono, de saco cheio e irritadas (e as aulas começaram só duas semanas atrás). A Lara não está nem conseguindo ficar acordada até a hora do BBB. Também discutimos a realeza britânica. Esse assunto parece nunca cessar. Estamos há cinco anos xingando o Charles. 

Com o Pedro, tem menos reclamação. É incrível – ele parece conhecer todo estudante que habita aquela faculdade. Ele acende um baseado e fica me contando coisas mirabolantes sobre qualquer um que passa. Como um único ser humano consegue conhecer tanta gente? Fico chocada.

O que me faz lembrar da minha coisa predileta de fazer quando chego mais cedo na faculdade: observar. Sinto o vento bater no meu rosto enquanto crio pequenos fragmentos de personalidades para quem passa por mim. Escuto conversas quando consigo. Do meu lado direito, há uma menina reclamando que gastou demais com material. Ela está segurando uma pasta enorme rosa. Se tivesse que arriscar, diria que ela faz moda ou arquitetura. É certinha demais para fazer artes plásticas e não consigo pensar em outro curso que precise de tanto material (e de uma pasta desse tamanho).

Não consigo escutar a conversa do grupo do meu lado esquerdo, mas eles estão rindo bem alto. Meu palpite é que esse grupo mistura vários cursos. Devem ter se conhecido no bar do lado da faculdade. Certeza de que almoçam lá toda sexta. Já consigo imaginar a mesona barulhenta. Eles parecem divertidos, queria ter a coragem de puxar assunto.

Na minha frente, vejo vários outros grupos peculiares e específicos, algumas pessoas sentadas sozinhas (como eu) e apressadinhos andando para lá e pra cá. Todos são dignos de uma história, um palpite e uma contemplação. Acho o ser humano um ser fascinante. E, de alguma maneira, todos querem uma certa atenção. Uma atenção como a que estou dando para eles agora. O meu jogo é que faço isso secretamente. Sigilosamente. O que eles achariam disso? Ficariam incomodados ou lisonjeados? Será que alguém já parou para me observar, nem que seja por um segundo? O que eles pensaram? 

Volto a focar na conversa do grupo ao meu lado. Descobri que são alunos de cinema. Hm. São todos bem diferentes um do outro, é interessante pensar que são todos do mesmo curso. Estão discutindo, para a surpresa de ninguém, cinema. 

Alguém falou que Licorice Pizza e Spencer são lentos, não acontecem nada e são longos. Um diz não gostar de filmes do Oscar porque são muito “naturalistas”. Não faço ideia o que isso pode significar. Todos concordam que filmes que normalmente são indicados para o Oscar não são bons. Estou levemente irritada com essa conversa, mas não o bastante para passar o vexame de me intrometer.

Agora estão falando que amam musicais. Eu também amo musicais. Uma menina disse que só escuta uma playlist disso. Já passei por essa fase. Gostaram de West Side Story. Estão cantando “Someone in the Crowd” de La La Land. Que ânimo para uma segunda de manhã. 

Voltando para o assunto do Oscar. Estão discutindo qual vai levar melhor animação. São muuuuito opinados. Por que fazem cinema ao invés de animação? 

Eita, ninguém fez o trabalho de Argumento I. Ou fizeram, mas não sabem se fizeram certo.

Não estou conseguindo escutar o resto da conversa porque um casal pegajoso se sentou entre mim e o grupo de estudantes de cinema. Os dois estão falando em vozes de bebês irritantes. Insuportável. 

São 09h10 e estou pensando em pegar um café antes da aula. Vou até a cafeteria mais próxima. 

A fila está enorme. Desisto. Tem sempre amanhã.

Conhecer no pretérito perfeito

Sabe qual é a conjugação mais solitária de todos os tempos? “Conhecer” no pretérito perfeito. Conhecia, conhecias, conhecia, conhecíamos, conhecíeis, conheciam. É como o final de uma história inacabada. É deixar parte da sua narrativa para atrás. É desconhecer o conhecido.

“Conhecer” no pretérito perfeito é doloroso e horrível. Você não quer aceitar que a pessoa na sua frente não é mais aquela que você conhecia; que a situação ou lugar que você se encontra não é o mesmo daquele que antes te confortava. Você se sente abandonado, como se o mundo todo tivesse continuado a andar e você estivesse paralisado no mesmo lugar. E o pior: ninguém está lá para te ajudar porque eles nem perceberam que você ficou para trás.  Esse é o sentimento de desconhecer o conhecido.

É a impossibilidade dentro da possibilidade. É a perda voluntária e involuntária ao mesmo tempo. Essa pessoa se afastou ou fui eu que não me esforcei o bastante? Esse lugar cresceu ou fui eu que diminuí? Por que é que diminui? Por que é que não estou me esforçando? Por que não estou crescendo e mudando junto? “Eu conhecia” é ficar constantemente questionando todas as escolhas que te levaram até o momento presente. 

Ao mesmo tempo, é aceitar que o que aconteceu é do passado. Aquilo ou aquele não faz mais parte de quem você é agora, e sim de uma história guardada em uma memória quase impalpável. E talvez o pior de tudo é ter que se acostumar com o “conhecia” – aceitar que aquele local (seja ele físico ou emocional) não vai ser mais frequentado, que aquela situação não vai se repetir mais uma vez, que você nunca vai se relacionar com aquela pessoa da mesma maneira. São milhares de pequenas mudanças acarretadas pelo ato de desconhecer o conhecido. 

Colagem por Cecília Young

É como esvaziar uma piscina. Ela está cheia de memórias, mas, no momento que todo o seu conteúdo é extraído, você não tem nada além de um buraco vazio e triste. Pular em uma piscina vazia vai te machucar, assim como perceber que o “conheço” passou para “conhecia”.  Encher a piscina de novo vai dar trabalho, mas você não tem outra opção. Não tem como nadar em nada por muito tempo. Você vai ter que abandonar o que conhecia ou conhecê-lo novamente, de uma maneira diferente. 

Do dia 30 de dezembro de 2021, sobre esse sentimento impossível:

“Hoje está foda. Foda de verdade. Acho que estou percebendo que o tempo está passando e que não estou conseguindo acompanhá-lo. E, se estou sendo honesta, não quero acompanhar. Estou exausta. Quero que a vida me deixe em paz, que ela simplesmente pare de me atormentar. Estou cansada de pedir isso. O tempo poderia parar e me deixar onde estou. Com quem estou. Como estou. Sei lá. Só me deixe em paz. Me deixe respirar um pouco e aproveitar o agora – está rápido demais.

Odeio fins de ano. Odeio começar de novo. Tenho medo. Quero ficar aqui no habitual, no velho. No que eu gosto e que gosta de mim. Não me faça sair daqui. E, pior que isso, não tire ninguém que eu ame daqui. Sinto que estão me deixando por escolha própria. Deixar no sentido de mudar. Estão todos entrando nessa onda de mudança enquanto estou afogada tentando chegar na superfície. Estão cada vez mais longe. Não culpo ninguém. Não posso culpar ninguém. Tenho que deixá-los me deixar. Dane-se se perco alguém que podia contar sempre. Posso ainda contar com eles de formas novas e diferentes. Novas e diferentes. Essas palavras me machucam.”

Escrevi isso quando percebi que várias coisas e pessoas que conhecia haviam se transformado em estranhos. Acho que esse deve ser um sentimento universal, não? Se sentir perdida por não conseguir se encontrar dentro da sua realidade. Conversar com alguém que era próximo e perceber que não existe mais assunto. Deitar-se na sua cama de infância e perceber que ela não é tão grande e confortável quanto era antes. Esse tipo de coisa. Ir do “conhecer” para o “conhecia”.

Pode ser argumentado que isso simplesmente faz parte do jogo da vida – coisas e pessoas mudam toda hora e não tem nada que possamos fazer sobre isso. Faz parte da vivência humana. Mas isso não quer dizer que não é dolorido, que não machuque perceber o que você perdeu durante o tempo. O que antes você amava e que agora nem reconhece mais. 

Não precisei contar nenhuma história para comunicar esse sentimento, né? Qualquer um que esteja lendo esse texto já passou por isso. Às vezes, o “conhecia” é menos dolorido. É descobrir que uma sorveteria que você adorava fechou. Às vezes, ele é um sufoco. É perceber que uma conexão com uma pessoa que você ama não existe mais. Ambas as situações são normais, por mais desconfortáveis que elas sejam. É preciso aprender que o sentimento passa, que novas coisas vão ser conhecidas e desconhecidas. Esse é o ciclo.

Do meu diário: Manhattan, NY

10/12/21

No aeroporto indo para Nova York. Só escrever isso parece loucura. Não sei exatamente o que pensar ou sentir. Vou tentar ser uma nova pessoa lá. Talvez tentar confiar mais nas minhas escolhas. Escrever isso me assustou. Eu tenho medo de mim. O que as pessoas vão achar?

11/12/21

Estou feliz! Estou muito feliz. Comi um cookie chamado “Ginger Rogers” e vi um musical da Broadway com a minha amiga. Foi tudo tão lindo! Uau. 

Vi Hadestown, um musical sobre o mito grego de Orfeu e Eurídice. Não sabia muito da peça e não sabia o que esperar… E, meu deus, foi lindo! O que mais me fascina sobre teatro é que só aquelas pessoas dentro daquele espaço estão vivendo aquilo. Mesmo que a peça fique lá por um tempo, toda noite é diferente. Naquele momento, estávamos todos presenciando algo único. Acho isso uma coisa bonita para se pensar.

12/12/21

Sentada num cafezinho no Soho. Isso é surreal. Que realidade é essa? Não pode ser a minha. Está frio e maravilhoso.

12/12/21 – mais tarde

Agora tô no Balthazar. Secretamente (ou não) tentando encontrar alguma celebridade. É cedo demais para beber? Eles me deram uma taça de espumante de graça. E, bom, pedi o drink da casa. Fico surpresa que não pedem a minha identidade. Para mim, pareço um garotinho vitoriano com obesidade mórbida de doze anos. Para eles, aparentemente, tenho cara de uma adulta que merece um espumante de graça.

Me colocaram em uma mesa perto do banheiro, que é o lugar perfeito para ver celebridades. Acho. Celebridades cagam, né?

13/12/21

Hoje andei, andei, andei. E percebi o quão bom é estar sozinha em Nova York. Quero dizer… não machuca, sabe? Em qualquer outro lugar, meu coração estaria ardendo. Aqui ele fica aquecido. Como se esse lugar estivesse abraçando-o. Estou parecendo louca, né? Desculpa.

Quero dizer, não louca, mas RIDÍCULA e BREGA e CLICHÊ. Mas o sentimento é genuíno. Por que isso é tão clichê, né? Por que Nova York acolhe os solitários? Deve ser a quantidade de coisa para fazer. E a quantidade de pessoas. EU ESTOU MUITO FELIZ SOZINHA EM NOVA YORK.

14/12/21 ♡

Nada de especial sobre essa data. Só estou sentindo uma paz que não sentia faz tempo. Estou sentada em um banco no High Line. O sol está batendo no meu rosto. Tem um senhor de chapéu num banco ao meu lado também escrevendo. Eu estou bem. Tudo o que vem na minha cabeça é que poderia me acostumar com essa sensação. 

Sinto que faço parte de um todo, entende? Mesmo que seja só por alguns dias, faço parte do todo que é Nova York. Eu me sinto tão bem.

Um outro senhor aleatório acabou de passar por mim e me desejar bom dia. Posso estar iludida, mas tudo é tão mágico. É como se eu estivesse em um cenário de um filme. Imagine a próxima cena como se fizesse parte de um filme independente:

Ontem achei uma loja de discos em Greenwich. Já era meio tarde e eu estava começando a voltar para o hotel (eram cinquenta minutos de caminhada). Eu tinha comido bem em um restaurante italiano – me deram espumante de graça de novo! Acho que deveria ser por volta das 21h, então não tinha nada além de restaurantes e barzinhos abertos.

De repente, eu me deparo com o que posso só descrever com um sebo caótico e estufado de discos ao meio do cenário bucólico e charmoso de Greenwich Village. Era definitivamente algo chamativo.

Ao mesmo tempo que a loja se destacava, ela parecia estar perfeitamente situada – como se tivessem colocado ela ali para eu encontrá-la naquele exato momento. Já faz um tempo que estou na missão impossível que é encontrar um LP de Clouds, da Joni Mitchell. Parecia que aquele cantinho seria o meu pote de ouro.

Entrei na loja. Infelizmente, não me lembro qual era a música que estava tocando. O que me lembro é do barbudo sentado atrás do caixa. Ele devia ter uns 60 anos e usava uma jaqueta de couro. Sem brincadeira, parecia ter acabado de sair de uma reunião de uma gangue de motoqueiros. Ele balançava a cabeça no ritmo da música e nem olhou para a minha cara. Achei, de certa forma, algo digno de se fazer com uma cliente que entra em sua loja de discos às nove da noite numa segunda. É o tipo de clientela que não quer papo. Pelo menos, foi isso que imaginei na hora. 

Entrar numa loja de LPs pode ser uma situação meio desconfortável no começo. Qual é a etiqueta? Você vai direto para o que precisa ou olha tudo? Tem tanta coisa aqui. O que eu estava procurando mesmo? Ah, Joni Mitchell, isso. 

Outra coisa sobre esse tipo de estabelecimento: por mais amarrotado que seja, é tudo beeeem organizado. Você encontra tudo separado por gênero e artista. Então foi fácil encontrar onde a Joni estava. 

Eeeeeee… Não tinha Clouds. Aliás, não tinha nem Blue ou Hejira ou Ladies of the Canyon ou Song to a Seagull. Tinha só uns álbuns ao vivo e coletâneas. Um pouco decepcionante, se eu for ser honesta. Mas não ia deixar isso me abalar! Poxa, olha o lugar que encontrei. Um buraco com um monte de sujeito estranho que ama música. Estava me sentindo em High Fidelity!

Lá fui eu ficar zanzando a loja até o barbudo de jaqueta me expulsar de lá.  Depois de algum tempo, uns três jovens entraram na loja falando bem alto sobre os Beatles. Os três usavam roupas meio alternativas e se comportavam de maneira errática e espalhafatosa. Eles sorriram para mim enquanto passavam direto para alguma fileira de discos. Percebi que os três trabalhavam lá quando o barbudo os reprimiu pelo atraso.

Eles começaram a cavar entre os LPs enquanto discutiam qual Beatle tinha a melhor carreira solo. Parece até que eu estou inventando, mas juro que, na minha frente, havia três caras que pareciam sair direto de uma banda grunge dos anos setenta brigando como crianças. 

O de cabelo longo percebeu que eu estava observando e perguntou se precisava de alguma ajuda. Eu não precisava, mas queria fazer parte da narrativa deles. Por isso, perguntei sobre Clouds da Joni Mitchell. Vai ver algum deles sabia de um esconderijo secreto na loja. Honestamente, eu só queria que eles me enturmassem e o barbudo me contratasse e eu vivesse uma história digna de um filme alternativo dentro daquela loja. Nova York me faz sonhar alto. 

O cabeludo me levou para aquela mesma sessão da Joni. Ele claramente não sabia tanto dela quanto sabia dos Beatles, então ficou me mostrando cada um e perguntando se era Clouds. Bom, como já falei, não tinha. Agradeci e nos distanciamos.

E é isso. Foi simples, nada especial. Os jovens e o barbudo provavelmente nem se lembram mais de mim. Não fui chamada para trabalhar lá ou qualquer coisa do gênero. Talvez se tivesse entrado na discussão dos Beatles… Enfim, isso pouco importa. Para mim, foi especial. É engraçado a quantidade de importância que podemos colocar em momentos pequenos.
No final, saí com um souvenir da minha experiência High Fidelity: o meu álbum predileto do Simon & Garfunkel, Parsley, Sage, Rosemary and Thyme. Fui abraçada com esse disco todos os cinquenta minutos de caminhada daquele buraco cinematográfico até o meu hotel.

Como escrever tudo sobre nada

Já vou começar com a mais pura honestidade: não sei sobre o que escrever. Posso talvez te contar que já fui duas vezes na terapia essa semana e estou escrevendo isso em uma terça. Ou que passei o final de semana inteiro na cama. Mas, também, posso te contar que ganhei um sorvete de banana de graça. Ou que uma das minhas melhores amigas está vindo passar alguns dias em São Paulo. A vida é feita disso, né? Momentos felizes e tristes. 

O problema é que, ultimamente, tenho ficado presa em momentos tristes. O que me faz entrar no estado mental e físico de não querer nada. Não quero nada, não quero pensar em nada, não quero fazer nada. Não quero o hoje, não quero o amanhã. Minha terapeuta diz que tenho que começar a ver a vida por um funil – focar em uma coisa de cada vez. Só assim vou aprender a ver alguma coisa além do nada de novo. Estou agora no meu quarto. No que consigo focar? Para ser honesta, acho que não consigo focar em nada. Não quero, não acho que tenho força. Escrever esse texto já está sendo difícil. 

Decidi focar na minha parede. Eu gosto dela, é como uma pequena exposição da minha própria curadoria. Tenho orgulho dela. Estou falando da parede bem em cima da minha cama. Quero dizer, as duas. Decidi em algum ponto do ano passado que colocar a cama no canto do quarto, entre o encontro de duas paredes, é bem mais maduro do que só encostar a parte da cabeça em uma única parede. Faz sentido? Para mim faz. 

Bom, tenho 18 coisas coladas nelas. Bastante, né? Isso nasceu da minha aflição de dormir com um paredão totalmente em branco em cima de mim. Deve ter alguma explicação psicológica para isso. Vou perguntar para minha terapeuta quando for lá de novo (ainda vou ter mais sessões essa semana… A saúde mental claramente no fundo do barril). 

Vamos começar nas duas primeiras coisas coladas do lado esquerdo: um pôster de E.T. e um de Les Misérables. O de E.T. consegui na CCXP de 2019 aqui em São Paulo. Uma das últimas coisas que fiz naquele dia exaustivo (e divertido) foi ir à loja da Universal comprar um presente de aniversário para a minha tia. Acabei levando um monte de camisetas para ela, então me deram um pôster de graça. Tinha de E.T., Tubarão e De Volta Para o Futuro – escolhi E.T. Essa escolha foi feita a partir do meu gosto estético apenas porque esse filme não é o meu favorito dos três.

O de Les Misérables veio em um livro enorme que comprei sobre o musical. Sabe aqueles livros gigantes para colocar na mesa como enfeite? Um desses. O pôster é da produção original de Londres e é bem parecido com a capa da edição que tenho do livro do Victor Hugo. Passei a adolescência inteira beeeem viciada em Les Mis. Tipo ao ponto de saber o nome de todos os personagens secundários, ler fanfic, ter minhas passagens favoritas… Vergonhoso. Até hoje consigo fazer uma análise teórica sobre todos os estudantes revolucionários de Les Mis. 

Agora o primeiro pôster que colei na parede direita: um de Barbarella em japonês. Esse está colocado em cima do buraco da minha velha televisão (que quebrou e teve que ser tirada). Ao invés de comprar uma nova, taquei uma Jane Fonda gigante por cima. Comprei esse com a minha irmã em Londres já faz alguns anos. Estávamos no South Bank – provavelmente meu lugar predileto lá. Encontramos um cinema meio cult e fomos assistir uma sessão especial de Laranja Mecânica que estava em cartaz. Tive que pedir para um cara lindo que trabalhava na lojinha pegar esse pôster para a gente… Foi meio vergonhoso. 

As próximas coisas que colei nas paredes foram seis pôsteres miniatura que comprei na Augusta Discos. Estava lá para ver os LPs, mas acabei não comprando nenhum. Tinha acabado de comprar um monte de disco usado que nem tinha escutado ainda. Em um canto da loja tinha um stand cheio de impressões diversas. Escolhi os posters de Casablanca, Sabrina, Eles e Elas, Quando danço contigo, Siga a Marinha e O Pecado Mora ao Lado. Só percebi depois que tem dois filmes do Fred Astaire e do Humphrey Bogart. E, sim, são todos filmes antigos – tenho uma fascinação louca por eles. Não sei explicar direito o porquê, mas nada me acalma mais do que um filme em preto e branco. 

Estava na casa de campo da minha família, em Minas Gerais, quando encontrei as próximas duas coisas na parede. Lá é tão abarrotado de objetos e lembranças que parece até um museu… Falam que artista é bicho acumulador, né? Explica muita coisa. Em uma caixa, encontrei as trilhas sonoras de Mulholland Drive e Alta Fidelidade. Mesmo não possuindo um tocador de CD, senti a necessidade de levar para casa. E agora sei por que fiz isso: para colar os livretos na minha parede. 

O próximo pôster é provavelmente meu favorito: da tour de Rumours do Fleetwood Mac, que aconteceu em 1977. E esse achei no Mercado Livre! Olha, nem sei como explicar o quanto amo esse pôster. Só saiba que Fleetwood Mac é o meu artista mais escutado no Spotify… Entendeu o vício? É óbvio que colei ele bem no lugar em que deito a minha cabeça à noite. Não tinha outro melhor.

O pôster que completa a minha parede esquerda é um que encontrei em uma estante aqui em casa (lembra o que falei de artistas serem acumuladores?). É um livro da, pasmem, Getty Images. Sabe aquele banco de imagens que coloca uma marca d’água gigante bem no meio da foto? Pois é. Aparentemente alguém aqui em casa comprou um livro deles, e eu roubei a capa de papel e colei na minha parede. A foto não é exatamente agradável: é alguém tirando lixo do que imagino ser uma praia. Mas é esteticamente bonita e é isso que importa.

Na parede direita tem três pôsteres que comprei na Cinemateca de Paris. Pois é, bem chique. Eles são as mais novas aquisições da minha pequena exposição. Foi quase perigoso me deixar à solta na lojinha da Cinemateca. Sério, só não comprei todos os livros porque estavam em francês. Na área de posters me deixei dar um leve surto: passei horas indo e voltando entre todos que tinham lá para escolher os melhores. O primeiro que sabia que teria que levar é o de Os Irmãos Cara de Pau porque, para mim, o John Belushi e o Dan Aykroyd são dois dos melhores seres humanos de todos os tempos. Esse pôster era o último que tinha no estoque – me senti muito sortuda.

O segundo que comprei foi de Os Guarda-Chuvas de Amor. Queria de qualquer jeito levar um pôster de um musical do Jacques Demy e estava entre esse e Duas Garotas Românticas (que, para ser honesta, prefiro). Mesmo que ame os dois filmes, a escolha foi de novo baseada unicamente em gosto estético. Mas não poderia sair de lá sem um pôster de um filme francês, né?

O último pôster foi meio que uma compra compulsiva. É um de The Rocky Horror Picture Show. Qualquer pessoa que me conhece sabe como amo esse filme, mas ter um bocão vermelho colado na parede do meu quarto foi, inicialmente, uma ideia que descartei. Não é muito Feng shui, né? Estava pagando pelos outros dois quando decidi que queria sim o de Rocky Horror. Devo ter murmurado algum francês de merda e saí correndo para pegar o pôster. Agora, quando alguém entra no meu quarto, ele é a primeira coisa que se deparam. E quer saber a verdade? Não me arrependo nem por um segundo. 

Agora tem dois últimos detalhes na minha parede. O primeiro é outra coisa que comprei em Paris: um cartão postal com uma foto em preto e branco do Ryan Gosling em Drive. Porque quem vê qualquer coisa com a cara do Ryan Gosling e não compra? Esse aí está bem em cima do pôster de Fleetwood Mac. Prioridades. 

O último detalhe é a coisa mais especial das paredes. É um pequeno pedaço de pano com “e dá a volta por cima” bordado. Antes de falecer, minha mãe dormia com isso colado em cima da sua cama. É uma frase que acho importante escutar – principalmente agora. Dar a volta por cima de todo esse nada, desse sentimento de cativeiro que eu mesma criei dentro da minha cabeça. 

Tinha prometido a mim mesma que não ia acabar esse texto com alguma moral ou mensagem positiva. Acho que é porque meu cérebro não está me deixando ir para esse lado sem me sentir um lixo. Então vou parar por aqui. Até a próxima vez que quiser ler algumas bobagens mentais em prosa ou analisar minuciosamente uma parede.

Há beleza na vida? Eu digo que sim!

            Outro dia fui a um restaurante sozinha. E, quero dizer, totalmente sozinha. Não estava nem com o meu celular. Tudo que tinha era um livrinho de bolso do Oscar Wilde e meu diário. O livro é chamado Only Dull People Are Brilliant at Breakfast e é magnífico. Não tem história ou uma linha de raciocínio muito clara: são só um monte de pensamentos e frases geniais de Wilde. São tipo uns tweets – o que me faz pensar que ele teria sido um ótimo influencer. Pedi um Manhattan e fiquei lendo. Nunca me senti tão chique na minha vida.

            O meu diário é outra coisa especial para aquele momento, talvez até a minha versão autoral de um livro com pensamentos e frases (não posso dizer que elas são geniais).  É um diário roxo de aproximadamente um palmo de altura. Ele está gasto, bem usado. Ele mal fecha mais e parece quase uma sanfona de tanta coisa dentro. Basicamente, o diário está caindo aos pedaços. Dentro há escritos, desenhos e colagens. 

Algumas páginas têm recortes de páginas de livros e revistas velhas. Em outras, fotos de polaroid.  Os desenhos dentro não são profissionais – são mais rabiscos feitos no calor da emoção. As escritas são todas corridas, nada organizadas. Coloco tudo que não consigo expressar para outro ser humano dentro de meu diário. Lá dentro não há nenhuma regra do que posso ou não colocar. É o único espaço em que falo qualquer coisa. Pedi um pedaço de torta de maçã com sorvete de creme, e escrevi sobre isso em meu diário. Fazia tempo que não sentia felicidade como senti naquele momento. 

            Outro dia decidi ir para a faculdade usando uma bota de cano alto. Ela é preta e muito bonita. Sei que essa não é uma descrição exatamente boa, me desculpa. Só confie em mim quando te digo que você também iria querer usar essa bota. Tenho usado muito ela. Me sinto melhor do que acredito ser com ela, sabe? É como se a bota tivesse um superpoder. Acho que talvez seja porque ela me lembra da bota da Mulher Maravilha daquela série antiga com a Lynda Carter, mas em outra cor. Assistia essa série quando pequena e não consigo descrever o quanto queria ser a Diana Prince. 

A caminho da faculdade, escutei Joni Mitchell. Clouds, Blue, Ladies of the Canyon… Todos aqueles álbuns e canções acústicas que te fazem sentir como se você estivesse muito chapada em alguma floricultura em Nova York dos anos 70. Era uma manhã ensolarada e calma – aquele horário das oito da manhã que as únicas pessoas na rua são quem está tentando chegar em algum lugar e aqueles que estão passeando com os seus cachorros.

Estava com a minha câmera de filme 35mm. Fui tirando fotos de coisas aleatórias e detalhes que via no meio do caminho. Tirei fotos do moço vendendo frutas, de placas que haviam sido desenhadas em cima, de árvores antigas e gigantes, de flores coloridas… Há alguma coisa sobre fotos de filme que é bem especial, né? Acho que deve ser todo o mistério de tirar uma foto e não saber imediatamente como ela ficou. Não revelei as fotos ainda, então não consigo te contar se elas ficaram boas ou não. De qualquer jeito, foi um acontecimento lindo e feliz. Estranho o fato de nunca ter prestado atenção nesse caminho que faço a anos até aquele momento.

            Vou te contar uma última história. Estava descendo de carro naquelas ladeiras enormes que dão uma vista linda da cidade. Você sabe quais, né? Era pôr-do-sol e parecia que São Paulo toda havia preparado aquele momento apenas para mim. Na caixa de som do carro, estava tocando “For The Widows In Paradise, For The Fatherless In Ypsilanti”, do Sufjan Stevens. O banjo e a voz delicada dele nessa canção eram o que aquele momento e aquela vista mereciam. O céu estava aquela mistura de roxos, rosas e azuis que fazem qualquer um repensar a ideia de paraíso. Os prédios pareciam ter sido desenhados de tão bem encaixados eles estavam naquela paisagem. As nuvens estavam lindas, aquelas que dão vontade de levantar os braços e tentar alcançá-las. 

            O carro estava deslizando sem esforço algum pelo asfalto e, pode parecer clichê, mas naquele momento, me senti invencível. Senti que fazia parte daquela cidade – que ela queria que eu estivesse lá e que, dentro dela, poderia criar coisas incríveis. Tudo estava funcionando da melhor maneira possível: a música, o carro, a cidade. Me fez acreditar que, talvez, eu conseguiria funcionar também.

            Agora, estou sentada na minha cama com uma vela de figo acesa ao meu lado e um expresso. Não vou mentir, estou me sentindo muito Carrie Bradshaw. Por isso, quero te contar o que essas três histórias têm a ver com esse momento atual: todos esses acontecimentos estão sendo extremamente romantizados por mim. Quer saber por quê? Porque a vida é dolorosa demais para não se deixar ver beleza em algo tão simples como escrever em um diário, tirar uma foto, escutar uma música ou acender uma vela. Te convido a fazer isso e romantizar a simplicidade de viver.

            O que seria “romantizar” a vida? Bom, uma trend no TikTok. Não. Quero dizer, sim, mas não só isso. É se fazer acreditar que a existência é mais bonita do que ela realmente é. Ou pelo menos fingir até você começar a acreditar na sua mentira. Não é viver uma ilusão, é ser a ilusão. É andar por aí como se você tivesse sido descrita por palavras bonitas de um autor aclamado. É ser a protagonista da sua vida. 

            A melhor notícia é que tudo pode ser romantizado e virar uma cena digna de um filme. Dançar pelo seu quarto enquanto se arruma. Ir no cinema sozinha. Usar uma roupa nova. Receber uma mensagem de alguém especial. Romantizar a vida não é uma ação exterior, é interior. É conseguir agir de uma maneira que faça você virar a sua personagem favorita. A sociedade hoje em dia está tão acostumada em se achar um lixo comparado aos outros que chego a pensar que o ato de romantização seja um ato de defesa necessário. Não é uma futilidade, é só aprender a amar as pequenas coisas de sua vida. É parar de querer viver a vida dos outros e começar a viver a sua. 

Acabo esse texto implorando para qualquer um que estiver lendo parar de ter vergonha de ficar animado com os detalhes. De achar que um dia que você se divertiu foi só “mais um” de tantos, de fazer tudo no automático. Preste atenção no ato de viver. Ache beleza em algo como acordar de manhã e preparar um café. É lindo existir como você está existindo agora.