O luto é uma experiência universal, mas pode ser encarado das mais diversas maneiras. Isso não varia apenas pela proximidade que se tem da pessoa que partiu, mas também por milhares de fatores que influenciam em qual será a maneira de lidar para cada um. Para Michelle Zauner, vocalista da banda Japanese Breakfast, foi por meio da comida, das memórias, da escrita e da conexão com a cultura que herdou da mãe, que encontrou a própria forma de encarar a perda. Em Aos prantos no mercado (Fósforo, 2022), narra com sensibilidade e crueza desde as mais distantes lembranças da infância na cidade de Eugene com os pais, até os dias atuais, já a mais de cinco anos desde que precisou dar adeus à mãe.

Originalmente publicado como um ensaio homônimo na revista The New Yorker, nele Michelle Zauner traz um vislumbre da ponderação do luto que viveu — e ainda vive — após a perda da mãe para o câncer terminal. Em paralelo, narra as próprias experiências, de modo a dar voz a filhos de imigrantes e àqueles que não encontram asilo em nenhuma das nacionalidades às quais pertencem — enquanto reflete sobre a própria condição de artista e mulher coreano-americana. O sucesso do ensaio foi tão avassalador, que Michelle mergulhou na própria trajetória de vida para escrever o livro, traçando o que antecede seu nascimento, com o casamento dos pais, até o momento em que se dedicou à tentativa de aprender a viver neste novo mundo no qual a mãe já não faz parte em matéria, somente em memória.
A obra receberá uma adaptação cinematográfica dirigida por Will Sharpe.
Zauner viu a mãe, Chongmi, perder a irmã e a mãe, ambas abatidas pelo câncer, e a si mesma perder a tia e a avó. Anos depois, precisou reviver o trauma quando a própria mãe foi vítima da doença. Diz que escrever a memória em honra à mãe faz parte de sua maneira de lidar com o luto, mas que nada jamais seria capaz de amenizá-lo.
“Às vezes, meu luto é igual a ter sido deixada sozinha em uma sala sem porta nenhuma. Toda vez que eu me lembro que a minha mãe morreu, parece que estou batendo contra uma parede que se recusa a ceder. Não há escapatória, só uma superfície dura contra a qual me choco vez após outra, um lembrete da realidade imutável de que eu nunca mais vou voltar a vê-la.” (p. 13)
Chongmi nasceu na Coreia do Sul, mas se mudou para os Estados Unidos após se casar com Joel Zauner, um vendedor de carros que viajava pela Ásia na época. Ainda em Seul, tiveram uma menina e a chamaram de Michelle. A filha cresceu em uma casa na cidade de Eugene, no Oregon, onde decidiram se firmar quando ela tinha apenas nove meses. A garota estudou em escolas regulares ao longo da vida, mas nunca conseguiu se sentir parte integrante daquela comunidade, porque apesar de ter sido criada nos Estados Unidos, nunca foi abraçada pelas pessoas como parte norte-americana por ser “coreana demais”; por outro lado, quando Michelle viajava a Seul para ver a família, as vezes sentia ser vista como “americana demais” para ser coreana. Viveu, então, em um limbo por muito tempo, sem ter firmeza quanto à própria identidade e a qual cultura recorrer como espaço de conforto. Por isso, levou a vida de modo a se distanciar da cultura coreana e deslocada da norte-americana. Não falava coreano tão bem, mas foi alimentada pela culinária asiática, entre tteokbokki, acompanhamentos banchan, kimchi, jjamppong, tteokguk, que a nutriram até a fase adulta.


Michelle não tinha uma relação perfeita com a mãe e deixa isso claro. Muitas vezes, o luto pode apagar as memórias desagradáveis e deixar que apenas as boas tomem destaque, canonizando aquele que se foi. Mas na narrativa, Zauner não esconde a verdadeira natureza da relação que tinha com Chongmi, pautada em uma troca consideravelmente equilibrada de amor incondicional e desavenças irremediáveis. Com uma obsessão pela beleza herdada pela própria relação com a mãe, perpassada entre as gerações, Chongmi inconscientemente replicava o que recebeu da criação enquanto filha. Michelle não atendia às expectativas que a mãe tinha dela, mas, ainda assim, tentava. Formou-se na faculdade, porém depois passou por uma série empregos que a desagradavam e morou em lugares nada confortáveis. O que Michelle realmente queria era ter uma banda e fazer música, na qual sempre encontrou refúgio desde a adolescência. Não via muitas mulheres como ela nos holofotes, e se inspirava em nomes como Karen O e Mitski — para quem abriu um show anos mais tarde. A infeliz percepção a qual foi forçada era a de que “se já tem uma garota asiática fazendo isso, então não há mais espaço para mim”, massacrada pela realidade de uma indústria que não inclui pessoas não-brancas.


Quando descobriu a doença da mãe, mal sabia como lidar com a informação. A esperança a acompanhou desde o momento em que partiu de volta à Eugene, até a manhã em que soube da morte. Nem por um momento, Michelle e Joel pouparam esforços para fazer com que Chongmi vivesse — ou, ao menos, que tivesse um fim digno e feliz. Viajaram para Seul para que ela visitasse os familiares e sentisse a brisa familiar do primeiro solo que pisou na vida; planejaram uma ida à Ilha de Jeju — que terminou impossibilitada pelo estado dela; e, ainda, Michelle fez questão de dar à mãe a oportunidade de vê-la se casar. No jardim da casa de infância, Michelle subiu ao altar para se unir a Peter Bradley em 2014, sob a benção da mãe. Chongmi faleceu duas semanas depois.
Em vida, ela criou laços, repassou seu legado, deixou devotos e uma extensão de si: a filha. Deixou arte, que Michelle eternizou na própria arte ao estampá-la no álbum American Sound and Where is My Great Big Feeling?, e lembranças que o tempo não é capaz de apagar. Uma delas é de quando Michelle disse: “Não é legal ver que agora a gente realmente goste de conversar uma com a outra?”, e a mãe respondeu: “É, sim. Sabe o que eu percebi? Que eu simplesmente nunca conheci ninguém igual a você”. Ou das vezes que cozinharam comidas típicas da Coreia juntas e construíram o elo que deu vida a uma formas mais significativas de enfrentamento do luto para Michelle.
Na memória, Zauner traz outro tópico delicado: o que acontece quando o membro que unifica a família se vai? A família se vai junto? A relação dela com o pai também não era a mais pacífica, mas seus atritos eram silenciosos, e não ruidosos como os dela com a mãe. Chongmi era a ponte entre Joel e Michelle; aquilo que os mantinha unidos. Quando morresse, o que aconteceria com eles? Ela pensava incansavelmente sobre “a possibilidade que de ela [a mãe] não fosse superar aquilo, de que seria possível existir um nós sem ela”.


Nos Estados Unidos, há um mercado chamado H Mart — o mesmo citado no título original da obra, Crying In H Mart [Chorando no H Mart, em tradução livre] —, que vende ingredientes para a preparação de comidas de berço asiático. Todas as vezes que Michelle ia até lá desde a morte da mãe, chorava. Além de escrever essa memória delicada e real, cozinhar se tornou o ponto de encontro dela com a mãe e consigo mesma. Diz que Chongmi não a ensinou a cozinhar, mas que a nutriu com a culinária que, anos depois, seria seu refúgio.
“Ninguém fala sobre isso. Não há nem uma troca de olhares de cumplicidade. Todo mundo fica lá sentado em silêncio, saboreando o almoço. Mas eu sei que estamos todos aqui pelo mesmo motivo. Estamos todos em busca de um pedacinho do nosso lar, de um pedacinho de nós mesmos. Procuramos um gostinho disso nos pedidos de comida que fazemos e nos ingredientes que compramos. Então nos separamos; Levamos as compras para o alojamento da faculdade ou para uma cozinha suburbana e recriamos o prato que não poderia ser preparado sem essa viagem. (…) O H Mart é onde nossa gente se reúne sob um teto cheio de aromas, com a fé de que vai encontrar algo que não pode ser achado em nenhum outro lugar.” (p. 17)
As páginas finais da obra são preenchidas com descrições ricas da preparação de pratos como tonkatsu, kalguksu e vários tipos de kimchi; cria retratos tão palpáveis que você quase consegue sentir o aroma e aquele quentinho pós-refeição na barriga. São preenchidas, também, pelas conquistas que Michelle teve, como vencer o concurso de ensaios da revista Glamour pelo texto Real Life: Love, Loss and Kimchi, ser indicada duas vezes ao Grammy com sua banda pela excelência na música alternativa, e ter Aos prantos no mercado como um best-seller do New York Times. Michelle também foi convidada a voltar à universidade em que se formou, a Bryan Mwar, para uma leitura de sua obra.
Aos prantos no mercado é agridoce, honesto e, apesar de toda a angústia, reconfortante. A voz compassiva e intensa de Michelle Zauner, que já era clara em sua música enquanto compositora, toma nova forma na estreia dela na literatura. Esta é uma ode à comida afetiva, à superação gradual do luto, e à memória como instrumento de preservação de uma vida que não se perde com a morte, seja ela fortalecida pela arte ou pela crença de que vivemos até que o último dos nossos se vá.