A transição da estética Tom Ford da moda para o cinema

Tom Ford começou a construir sua estética nos anos de 1970. Nascido em 1961, no Texas (EUA), o estilista e diretor se mudou para Nova Iorque em 1979 para estudar história da arte na NYU. Durante essa época, Ford participava ativamente do cenário social nova-iorquino — basicamente estava na localidade certa e no momento certo para conhecer a vida noturna que se tornou histórica quando se trata de festas.

Mais precisamente, o artista frequentava o icônico Studio 54; clube que ficou conhecido por seus convidados extremamente famosos. Todo mundo que era alguém nos anos de 1970 e 1980 frequentou a boate. Tom se encontrava com os mais conhecidos nomes do momento: Andy Warhol, Bianca Jagger, Halston e Jerry Hall. Foi ali, sob as luzes pulsantes, o chão suado, a multidão da pista de dança e a névoa de fumaça dos cigarros dos convidados que surgiu a base da estética Tom Ford: algo sexy, ousado, com silhuetas dos anos de 1960, 1970 e até mesmo 1980 (vide sua coleção mais recente de Primavera/Verão 2022).

Mas ele nunca foi apenas um designer. Em 1980 Ford largou a faculdade em Nova Iorque para focar na sua carreira como ator em Los Angeles. Seus anos atuando em comerciais fizeram com que sua paixão por cinematografia se desenvolvesse.

GUCCI DE TOM FORD

Campanha publicitária da coleção Primavera/Verão 2003 da Gucci. [Imagem: Mario Testino/ Reprodução]

Os aficionados por moda sabem que foi Tom Ford que reviveu a grande casa Gucci. Nos anos de 1990 a marca passava por crises: o nome estava manchado pelos dramas familiares, o assassinato de Maurizio Gucci, e o desmantelamento da dinastia ao passo que os integrantes da família vendiam suas partes da empresa.

Ford assumiu o volante com pouquíssima experiência. Foi chamado para sua primeira coleção de moda feminina na maison em 1990, e antes disso havia atuado apenas como assistente de design para a estilista norte-americana Cathy Hardwick. Parte do motivo por trás de sua contratação foi, sem dúvidas, que ninguém queria trabalhar na marca. Até 1994 já tinha quase todo o controle criativo em mãos — desde a criação das roupas até o marketing e o design de lojas (ele cursou arquitetura por alguns anos na Parsons School of Design em Nova Iorque).

Tom Ford revolucionou não só a grife como também a moda da década. Deixa clara a sua visão criativa na coleção de Outono/Inverno 1995 com silhuetas acentuadas, diferentes das sem forma comuns na época; decotes fundos; cortes que remetem aos anos de 1970; cores ousadas e ricas; texturas e veludo — isso sem esquecer a identidade da marca. Basicamente: a sensualidade dominava a passarela. As modelos usavam olhos esfumados, cabelos selvagens à la pós sexo e até o caminhar era sexy e provocativo.

Sem surpresa alguma, a coleção levou ao apoio de um dos maiores sex symbols da década (e talvez da história): Madonna. A cantora usou a camisa de seda azul, peça icônica trajada por Kate Moss no desfile, para o VMAs daquele ano.

Esquerda: Madonna usando Gucci no VMAs, 1995. Direita: Kate Moss desfilando para a Gucci FW95. [Imagens: Reprodução/ Pinterest]

O sucesso da Gucci de Tom Ford se deu justamente no apelo sexual, algo extremamente ousado e pouco visto no cenário da moda até então. Tudo em sua era gritava “sexo”, desde as roupas até a trilha sonora dos desfiles e as campanhas publicitárias — afinal, foi ele quem colocou modelos na passarela com calcinhas e cuecas fio dentais na coleção de Primavera/Verão 1997.

As campanhas de marketing carregam tanto peso quanto suas coleções e são até hoje lembradas por profissionais e amantes da moda como uma das melhores da história da casa. Em sua maioria carregam, novamente, o teor sexual pesado e marcante da época. Mas além disso, carregam um fator que se repete também em inúmeras coleções do designer: uma coloração azulada, saturada e escura. Uma paleta que remete o consumidor instantaneamente a algo selvagem.

Campanhas publicitárias da Gucci na era Tom Ford. [Imagens: Reprodução/ Pinterest]

Seu estilo ficou marcado pelo seu tempo de festa no Studio 54 e todas as coisas que vieram com ele. A estética hipersexualizada, no entanto, é hoje questionada por profissionais e amantes de moda ao mesmo tempo que sua importância é reconhecida para o crescimento e estabelecimento da marca e do designer no mercado. Os questionamentos vêm em uma perspectiva da mensagem passada pelas roupas e campanhas: a hiperssexualização sem fundamento e sem mensagem é o jeito mais prudente de vender roupas, principalmente quando o objeto de desejo em tais campanhas são, em sua maioria, mulheres?

O assunto de hiperssexualidade vem crescendo com a pandemia: depois de anos trancados em casa, o retorno das estética ligadas à exposição e glorificação do corpo se mostrou forte na temporada de Primavera/Verão 2022 no hemisfério norte. A conversa levanta também o ponto de inclusão de diferentes tipos de corpos na criação da fantasia, coisa que jamais seria pensada nos anos de 1990 quando Tom Ford estava na Gucci.

TOM FORD NA YSL

Looks de desfiles da Saint Laurent assinados por Tom Ford. [Imagem: Arquivos Vogue]

Durante seu tempo na gigante italiana, o Gucci Group adquiriu a maison francesa Yves Saint Laurent (atualmente apenas Saint Laurent). Em 1999, nomeou Tom Ford como diretor criativo da casa. A posição se deu, em grande parte, por motivos financeiros já que entre 1995 e 1996 Gucci, sob a direção criativa do designer, aumentou suas vendas em 90%. A esperança para YSL era a mesma.

No entanto, com seu fundador ainda vivo e parte da empresa, a meta se tornou um pouco mais complicada. Ford levou a sensualidade para a maison francesa, um toque risqué tendo em vista o estilo parisiense e o antigo trabalho de Saint Laurent para a marca.

Seu legado, porém, prevaleceu e mudou o rumo da estética YSL para sempre. As peças com transparência, decotes profundos e campanhas provocadoras não foram esquecidas ou ignoradas por seus sucessores Hedi Slimane ou Anthony Vaccarello que hoje a interpretam (junto ao próprio DNA estabelecido pelo fundador) a partir de suas próprias perspectivas.

O romantismo da casa nunca foi esquecido pelo estilista. Ford tinha a capacidade incontestável de mesclar a sua própria visão com elementos típicos da marca, e apesar do seu tempo (ele atuou como diretor criativo até 2004) na maison ser por vezes esquecido, também colaborou na formação e estabelecimento da sua forte estética.

TOM FORD, A MARCA AUTORAL

Campanha publicitária para Tom Ford. [Imagem: Reprodução/ Pinterest]

De toda forma, essa estética sexual e ousada foi levada para sua marca homônima, fundada em 2005. O designer deixou a gigante italiana em 2004 por conta de supostas desavenças como conglomerado Kering (antiga PPR) que possuía uma quantidade de ações significativa do Gucci Group.

Sua primeira coleção, Primavera/Verão 2011, carregou muitos dos elementos já vistos na Gucci, mas desta vez ainda mais fortes: as silhuetas, o glamour e estilo dos anos de 1970, as cores ricas, as estampas sensuais — tudo que faz parte do esperado DNA Tom Ford.

Nos 16 anos de marca, o sex appeal se manteve presente em cada corte, textura, cor, decote, tecido, acessório, maquiagem e até fragrância. O designer fez com que ao ser ouvido o nome “Tom Ford”, “sensualidade” seja a primeira coisa que vem à mente. Construiu uma identidade forte que liga suas criações com essa estética particular que o define.

Desfiles da marca Tom Ford. [Imagens: Vogue Runway]

Seu tempo em festas no Studio 54 junto à todas as suas outras paixões inevitavelmente resultaram em algo brilhante, particular e identificável. Não são apenas as roupas sensuais com traços dos anos de 1970 que remetem à festa. É Tom Ford.

Mais uma vez leva essa característica marcante para o lado publicitário da marca, ainda flertando com o estilo de paleta apresentado em seu tempo na Gucci: o azul, o saturado, o escuro. Por conta da década, as insinuações sexuais não tão explícitas ou pesadas, mas continuam presente. 

Campanhas publicitárias para Tom Ford. [Imagens: Reprodução/ Pinterest]

TOM FORD NO CINEMA: DIREITO DE AMAR

Sua saída da marca italiana significou o começo de grandes coisas, inclusive a sua concretização da sua paixão pelo audiovisual. Em 2005 anunciou o lançamento da sua produtora, a ‘Fade to Black’.

Não levou muito tempo até a estreia de seu primeiro filme Direito de Amar (2009) que conta com os nomes de Colin Firth, Julianne Moore e Nicholas Hoult. O primeiro longa de Ford obteve certo sucesso entre críticos e o público em geral. No Rotten Tomatoes — site de avaliação de cinema —, a produção recebe 86% dos críticos e 81% da audiência.

Não surpreendentemente, muitas das críticas (boas ou ruins) giram em torno do visual do filme. Seja a avaliação de Matthew Lucas do site The Dispatch, que diz “Pode muito bem marcar o debut de um ótimo stylist visual, mesmo que o filme, no final das contas, não alcance as expectativas” até a crítica de Simon Miraudo, que afirma que “O filme debut de Tom Ford como diretor, Direito de Amar, é simplesmente deslumbrante. Desde a gloriosa cinematografia até os atores e atrizes incrivelmente belos; nenhuma cena é gasta em nada remotamente feio”.

A cinematografia encantadora logo evidencia o talento do diretor para as artes visuais, no entanto sua estética típica não é tão marcante. Ford apresenta um filme com uma coloração apaixonante e romântica, cores quentes, suaves e delicadas que refletem a melancolia marcada pelo roteiro. Não há nada menos do que o belo na tela de Tom Ford.

Direito de Amar carrega uma fotografia digna de pastas no Pinterest e publicações virais em redes sociais — coisa que de fato ocorre com certa frequência. O fato é que a beleza no cinema Tom Ford não é vazia: tudo em tela (ângulos, colorações, luzes, ambientes, roupas, atores) reforça a história passada. A melancolia é transmitida não só por palavras e expressões como também por enquadramentos e cores.

Cenas de Direito de Amar. [Imagens: Reprodução]

O SUCESSO DE ANIMAIS NOTURNOS

Depois de quase uma década, Tom Ford retorna às telonas com um filme de também grande sucesso: Animais Noturnos (2016). A trama segue o mesmo ar de melancolia e drama do primeiro, com visuais que complementam a narrativa estabelecida pelo roteiro de forma envolvente.

Um dos elementos chaves do filme que marcou a estética Tom Ford no cinema foram as cores, tons que marcaram seu tempo na Gucci e marcam até hoje sua marca autoral: tons ricos e profundos de verde, azul, vermelho e branco. 

A intimidade em Animais Noturnos, no entanto, não vem por meio da sexualidade presente tão constantemente nas campanhas publicitárias do diretor, mas por um jogo de coloração e iluminação capaz de transparecer os sentimentos dos personagens. O filme é, sem dúvidas, belo — desde os atores até os figurinos e a cinematografia.

Mais uma vez, ao observar as críticas do longa no Rotten Tomatoes, o visual é unanimemente elogiado, seja a avaliação boa ou ruim. O que certifica, mais uma vez, Ford como um diretor fundamentalmente visual, acompanhado de ótimas performances e roteiro igualmente envolvente, mas marcado pelas cores e luzes.

Cenas de Animais Noturnos. [Imagens: Reprodução]

Diferente de seus contemporâneos como Wes Anderson, que tem seu estilo marcado por cores alegres e vibrantes, Ford é lembrado pelos tons fechados, íntimos, ainda vibrantes mas de forma mais profunda, cores capazes de contar toda a narrativa sem nenhuma outra palavra.

A capacidade de narrar a história pelo visual marca Tom Ford como um verdadeiro artista. Seu trabalho na moda, sua paixão pelo cinema e seu passado em publicidade se combinam em uma receita formidável que resulta nos fins comerciais e artísticos de tudo criado por Ford.

[Crítica] Noite Passada em Soho: a grande ambição de Edgar Wright

ALERTA DE SPOILER

O novo terror psicológico de Edgar Wright estreou em outubro nos Estados Unidos, e desde então colecionou críticas mistas. Na última quinta-feira (18), o filme chegou aos cinemas brasileiros e marcou sua estreia como um dos mais antecipados do ano entre os amantes do gênero. Com um elenco estrelado pela favorita do ano Anya Taylor-Joy (O Gambito da Rainha), Thomasin McKenzie (Jojo Rabbit) e Matt Smith (The Crown), Noite Passada em Soho apresenta um show de cores e psicodelia para quem assiste.

Ambientado entre duas épocas, o longa segue Eloise Turner (Thomasin McKenzie), uma jovem tímida do interior da Inglaterra que se muda para Londres a fim de estudar moda na London College of Arts. Lá, ela encontra dificuldades em se encaixar e logo adentra um mundo de alucinações quando se muda para um quitinete alugado pela Sra. Collins (Diana Rigg). Em seus sonhos, Eloise conhece Sandie (Anya Taylor-Joy), uma aspirante a cantora nos anos 1960, que procura Jack (Matt Smith) para ser seu agente, até que as coisas vão para um mau caminho.

Imagem: Reprodução/PARISA TAGHIZADEH

O filme tem um roteiro que procura alcançar várias tonalidades, e temas como saúde mental, traumas e assédio sexual são abordados em meio a um cenário colorido e ilustrado pelas ruas de Londres. Desde o começo conhecemos Eloise como uma garota sonhadora e inocente, que mora com a avó e lida com o falecimento de sua mãe. É comentado já no início que Eloise é sensitiva e capaz de ver imagens de sua mãe, a qual também tinha problemas mentais que levaram à sua morte, e é essa habilidade que carrega o filme todo.

Após sentir-se hostilizada na república de estudantes, Eloise procura um quarto para alugar na rua Goodge 8, onde é apresentada Sandie, personagem que Eloise acompanha nas ruas londrinas dos anos 1960. Toda vez que Eloise dorme, ela viaja ao passado e se encanta pela cantora, que costumava dormir no mesmo quarto na casa da Sra. Collins. A personagem de Anya Taylor-Joy é, assim como a atriz, cativante e impossível de tirar os olhos. 

Com um figurino impecável e fiel à época, não há como não se deixar levar pela visão romantizada de um cenário tão vivo no imaginário atual. A efervescência cultural de Londres, o Swinging Sixties e a promessa de sucesso de uma nova era é o mood ditado por Wright nas sequências do passado. É irônico como é essa mesma romantização da época, sob a perspectiva da protagonista Eloise, é aos poucos quebrada à medida que ela conhece mais Sandie e Jack. 

Imagem: Reprodução/PARISA TAGHIZADEH

A cada vez que Eloise dorme, a vontade de passar mais tempo no passado aumenta. Porém, logo ela descobre as dificuldades que Sandie enfrenta no show business londrino, regado à prostituição e homens predadores. Jack torna-se, então, o vilão da história. Aqui, Edgar Wright mostra uma das suas maiores intenções: o verdadeiro perigo são os homens da vida de Sandie. Quão longe ela iria para conquistar seus sonhos? Quanto ela sacrificaria? O antagonista Jack – brilhantemente atuado por Matt Smith que, sem dificuldade, passa o ar assustador necessário – pressiona Sandie a prostituir-se, até ela perder sua essência. 

Enquanto isso, Eloise começa a ficar cada vez mais instável e tenta salvar Sandie a todo custo. Essa talvez seja a parte mais emocionante do filme, quando a realidade se mistura com alucinações da vida passada. A expectativa de saber o que aconteceu com Sandie cresce a cada minuto e é ilustrada pelos incríveis efeitos especiais do filme. 

Imagem: Reprodução/PARISA TAGHIZADEH

Os vilões, homens que abusaram sexualmente de Sandie, vão aterrorizando diariamente Eloise, que começa uma investigação para encontrar Jack na vida real. E é aqui que o filme decai em qualidade de roteiro. O que antes era uma busca psicológica e instigante, vira uma confusão mal trabalhada. As visões dos abusadores são impactantes no começo, mas depois viram apenas um jumpscare. Além disso, à medida que Eloise perde sua sanidade mental, o ritmo acelera e atropela a história. 

Apesar de um crescimento fantástico, o roteiro peca na busca de Eloise por Jack, que poderia ter sido trabalhada de uma forma melhor. Ela confunde Jack por Lindsay, um personagem que foi brevemente introduzido no passado e precisava de mais tempo de tela para criar um impacto maior no espectador quando a confusão é explicada. Assim como Lindsay, John (amigo de Eloise), cativa e promete ser um dos melhores personagens do longa, mas não é aprofundado e seu relacionamento com a protagonista acaba sendo raso.

Wright, entretanto, consegue camuflar essas pequenas falhas com um show de efeitos especiais e cores incríveis, fazendo com que mal se preste atenção nisso.  A fotografia é, com certeza, o quesito mais digno de premiação em Noite Passada em Soho, junto das atuações (em especial da novata Thomasin McKenzie).

Imagem: Reprodução/PARISA TAGHIZADEH

O maior erro do filme, algo que nem a estética salvou, foi o final. O foco de repente vira a Sra. Collins, que revela ser Sandie, ou seu nome real: Alexandra Collins. O roteiro tenta convencer que Sandie é a verdadeira vilã, que assassinou os homens que tentaram estuprá-la e os escondeu debaixo do piso da casa. Apesar de uma sequência visual interessante, é mais do que decepcionante o jeito com que Eloise descobre a verdade sobre a Sra. Collins e entende o que realmente aconteceu.

Collins simplesmente entrega em uma conversa a resolução do filme todo e muda a narrativa inicial, aliada a uma cena desconcertante onde os homens mortos pedem ajuda à Eloise, como se indicassem ser as reais vítimas do filme. É estranha a forma que Wright termina o longa, pois passou mais da metade do filme mostrando a misoginia e a realidade das mulheres no show business, só para colocar uma das protagonistas como uma assassina fria. 

Não existe a sensação de descobrir aos poucos o que realmente aconteceu, porque isso foi explicado palavra por palavra. Sandie, que recebeu tanta profundidade, agora é Alexandra Collins, uma mulher traumatizada em sua juventude que não recebe a mesma profundidade na velhice. 

O que era um filme sobre um medo extremamente real de mulheres do mundo todo, termina de forma agridoce. Edgar Wright, mais uma vez, conquista uma narrativa estética brilhante, como é visto em Baby Driver (2017) e Scott Pilgrim Contra o Mundo (2010). É admirável a ambição de Noite Passada em Soho, que apesar dos pesares, consegue lidar com saúde mental e traumas ligados à abuso sexual de forma interessante e – até certo ponto – respeitosa às suas importâncias. 

É definitivamente um filme para a lista de filmes que é necessário assistir para criar a própria opinião, mas ainda é uma experiência divertida e de agarrar o assento. Noite Passada em Soho é um dos melhores filmes do ano até agora e, com certeza, uma razão para ir aos cinemas.

Veja o trailer abaixo:

O complexo do “branco salvador” nos filmes

Após o assassinato de George Floyd e protestos subsequentes, Histórias Cruzadas, o filme de 2011 sobre empregadas domésticas negras, começou a fazer sucesso na Netflix. Em Histórias Cruzadas, Skeeter (Emma Stone) é uma jovem branca da alta sociedade sulista que vive nos conturbados anos 60, no Mississippi, no decorrer do movimento dos direitos civis. Skeeter, recém-formada na universidade, está determinada a ser uma escritora. Para isso, decide entrevistar mulheres negras que passaram a vida como empregadas de famílias brancas e surpreende sua cidade.

Octavia Spencer, Viola Davis e Emma Stone em Histórias Cruzadas (2011) [Imagem: Reprodução/The Sun]

O aumento na popularidade de Histórias Cruzadas motivou muitos usuários do Twitter a discutirem sobre o chamado “complexo do branco salvador” do filme, sugerindo que o longa-metragem não é apropriado para quem busca se educar sobre o racismo.

Viola Davis, ativista do movimento antirracista e intérprete de Aibileen Clark em Histórias Cruzadas, disse em uma entrevista para a revista The New York Times em 2018 que se arrepende de ter participado da produção. “Eu só senti que, no fim do dia, as vozes das empregadas não foram ouvidas. Eu conheço Aibileen [sua personagem no filme]. Conheço Minny [personagem de Octavia Spencer]. Elas são minha mãe, elas são minha avó. E eu sei que se você quer fazer um filme cuja premissa é entender como é trabalhar para pessoas brancas e criar seus filhos em 1963, eu quero ouvir como você realmente se sente. E eu nunca ouvi isso no filme”, confessou Davis.

Em 2020, Viola relembrou o assunto em uma entrevista para a revista Vanity Fair. “Não há ninguém que não fique entretido com Histórias Cruzadas“, afirmou a atriz. “Mas há uma parte de mim que parece ter me traído e traído meu povo, porque eu estava em um filme que não estava pronto para contar toda a verdade”. Em seu desabafo, Davis disse que o público branco pode, no máximo, sentar e receber uma lição acadêmica sobre quem é o público negro, mas não são movidos por isso.

Octavia Spencer e Viola Davis em Histórias Cruzadas (2011) [Imagem: Reprodução/The Sun]

Histórias Cruzadas é um filme sobre racismo a partir de uma perspectiva de personagens brancas, dirigido por um homem branco, Tate Taylor, a partir de um livro de uma autora branca, Kathryn Stockett. Desse modo, deduzimos que investiram na ideia do que significa ser negro, porém servindo ao público branco.

No cinema, o conceito de branco salvador é uma narrativa na qual um personagem branco resolve os problemas de um personagem não-branco. O personagem branco tem a intenção de “resgatar” o personagem não-branco de um cenário de vulnerabilidade e, assim, o branco é visto como um herói porque conseguiu salvar o não-branco de um destino tido como impossível de ser resolvido.

Esse conceito é extremamente perigoso, mas usado em muitos filmes populares que são conhecidos como exemplo para se educar sobre o racismo quando, na verdade, só enfatizam a questão do branco desfrutar do destaque em uma luta que não é dele.

Em Estrelas Além do Tempo, uma equipe de cientistas formada por mulheres negras mostrou ser o elemento que faltava para que o Estados Unidos ganhasse a corrida espacial em combate com a Rússia durante a Guerra Fria. O filme de 2016, dirigido por Theodore Melfi, é baseado na história real de Katherine Johnson (Taraji Henson), Dorothy Vaughan (Octavia Spencer) e Mary Jackson (Janelle Monáe).

Contudo, mesmo que a produção tenha tido boas intenções, a narrativa também traz consigo o infame complexo do branco salvador. Por exemplo, quando Al Harrison (Kevin Costner) derruba a placa que indica a divisão de mulheres brancas e negras nos banheiros da NASA. Na história real, Katherine Johnson se recusou a usar o banheiro “colorido”, desafiadoramente usando o banheiro “apenas para brancos”. A conquista foi somente de Johnson, mas Theodore Melfi defendeu a reescrita histórica para a revista Vice. “É preciso haver brancos que façam a coisa certa, é preciso haver negros que façam a coisa certa. E alguém faz a coisa certa. E então quem se importa com quem faz a coisa certa, desde que a coisa certa seja alcançada?”, manifestou Melfi.

[Imagem: Reprodução/Pinterest]

No Oscar de 2019, Green Book: O Guia foi o grande vencedor, consagrado como o melhor filme da temporada. O filme ganhou três estatuetas, incluindo a de melhor ator coadjuvante para Mahershala Ali e o prêmio mais importante da premiação. Green Book: O Guia acompanha a amizade real entre o talentoso pianista negro Don Shirley (Mahershala Ali) e seu motorista branco Frank Vallelonga (Viggo Mortensen).

A escolha do longa-metragem de 2018 dirigido por Peter Farrelly como melhor filme pela Academia, no entanto, causou incômodo. A revista The Root, que fornece conteúdos instigantes de uma variedade de perspectivas negras, disse que o filme ignora a maior parte do perigo e o racismo agressivo que um homem negro viajando pelo Sul dos Estados Unidos teria mesmo sofrido. A família de Shirley, em uma entrevista para revista Time, afirmou que isso manchou seu legado, e também os criadores da produção, no tempo em que promoveram o filme, foram acusados de racismo.

Mahershala Ali e Viggo Mortensen em Green Book: O Guia (2018) [Imagem: Reprodução/Vogue]

Hoje, nós vivemos em uma realidade onde os criadores negros são desprezados, onde os atores negros raramente são indicados em premiações e a maioria das pessoas não consegue nem mesmo citar um roteirista negro. Filmes com o complexo de salvador branco produzidos por homens brancos são insustentáveis.

Desde 2015, quando a hashtag #OscarsSoWhite (#OscarMuitoBranco, em inglês) surgiu nas redes sociais exigindo mais diversidade na premiação de Hollywood, a Academia prometeu mudanças para melhorar a representatividade de seus membros. No Oscar de 2017, pela primeira vez na história, ao todo, negros receberam 20 indicações e todas as seis principais categorias possuíram um negro na disputa. Em 2015 e 2016, entre os 20 indicados nas quatro categorias de atuação, todos eram brancos.

Segundo o estudo da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), somente 27,6% dos protagonistas dos filmes que estrearam em 2019 nos Estados Unidos foram negros. A discrepância foi ainda maior ao analisar a participação de diretores negros nas 146 produções de maior bilheteria do país, somente 5,5%.

Em 2020, atores não-brancos interpretaram 40% dos papéis principais. Em 2019 e 2018, a média foi de 27% e a participação feminina nesses papéis chegou perto de 50%. Desde 2011, a porcentagem de negros como personagens principais passou de 10,5% para 27,6%. Entretanto, para especialistas, essas mudanças apenas ganharão peso quando cargos de prestígio na indústria também forem preenchidos por mais negros, como os de diretores, roteiristas e executivos, considerando que 93% são brancos.

É mais que necessário analisar a natureza problemática desse complexo. Filmes que reproduzem narrativas a partir disso deslegitimam a luta da comunidade negra e só fazem pessoas brancas se sentirem bem por contribuir com o mínimo. O que precisamos disseminar como público e realizadores são histórias em que um personagem negro não precise intrinsecamente do auxílio de um personagem branco. Da mesma forma que é na luta antirracista, o branco é capaz de ser simpatizante, de apoiar as vozes da minoria, mas não ser o protagonista.

[Crítica] Eternos: o hate é justificável?

Eternos chegou aos cinemas na última semana (04) como o primeiro filme de um grupo de super-heróis a se reunir depois de Vingadores: Ultimato nessa Fase 4.

Normalmente os filmes do incrível universo cinematográfico Marvel possuem uma grande força nos lançamento, mas a obra bateu um recorde negativo: recebeu o primeiro “B” no CinemaScore, site que regista dados de pesquisa de audiência nos cinemas. No Rotten Tomatoes, conhecido por compilar opiniões de diversos críticos, o novo épico da MCU também não teve uma boa performance. Atualmente, o filme possui 49% de aprovação, número mais baixo do estúdio até hoje. Apesar disso, conseguiu ser a segunda maior estreia entre as bilheterias globais nos cinemas na era da pandemia, superando até mesmo Viúva Negra e Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis.

Interpretados por Angelina Jolie, Salma Hayek, Barry Keoghan, Gemma Chan, Richard Madden, Ma Dong-seok, Kumail Nanjiani, Lauren Ridloff, Brian Tyree Henry e Lia McHugh, são uma poderosa raça de seres imortais criados por deuses cósmicos, Celestiais, que os colocaram na Terra como um experimento de avanço tecnológico de uma cultura primitiva, moldando parte da história e das civilizações enquanto enfrentavam os Deviantes, principais inimigos.

A história nas HQs

A história dos Eternos começou nos anos de 1970, quando Jack Kirby deixou a Marvel Comics para trabalhar na DC Comics. O autor tinha como ideia criar uma nova franquia que não estivesse atrelada aos tradicionais heróis da editora. Então, ele produziu os Novos Deuses, que mostram uma casta de seres imortais extremamente poderosos — inclusive Darkseid faz parte deles. Contudo, essa saga ficou incompleta quando Kirby retornou para a Marvel, e a trama foi incorporada ao Universo DC.

Em meados de 1970, Kirby utilizou alguns dos conceitos que havia idealizado em Novos Deuses para criar os Eternos, com uma proposta semelhante de franquia descolada da cronologia tradicional do Universo Marvel. A edição Eternals #1 foi lançado em 1976, com o autor introduzindo os deuses cósmicos Celestiais, que visitaram a Terra há um milhão de anos e fizeram experimentos com os ancestrais, que mais tarde formariam a raça humana.

Já em 1980, os roteiristas Roy Thomas e Mark Gruenwald aproveitaram a criação de Kirby e terminaram algumas linhas de narrativa inacabadas em Eternals na revista do Thor, indo da edição #283 até #301. A saga mostra o Deus do Trovão lutando contra os Eternos, Celestiais e os Deviantes, e a partir disso, eles começaram a ser incorporados à cronologia do MCU, ainda que de uma forma tímida e um tanto desconexa.

Cinco anos depois, 1985, a Marvel resolveu reposicionar os Eternos como parte definitiva da criação do Universo Marvel, com uma minissérie de 12 edições desenvolvidas por Peter B. Gillis e Sal Buscema. Já havia algumas amarrações com os heróis tradicionais e um especial lançado em 2000 fez uma conexão dos Eternos com os X-Men e o vilão Apocalypse.

Após essas histórias, os Eternos chegaram a aparecer em um reboot (reinício) na frente de publicações adultas Marvel MAX. Porém sua maior importância na história do MCU foi em 2006, quando Neil Gaiman escreveu uma minissérie com 7 edições sobre a equipe.

O quadrinho, com arte de John Romita Jr, faz o que todas as outras histórias dos Eternos haviam tentando até aquele momento, mas não conseguiram fazer por completo: integrar a equipe de vez ao Universo Marvel, definindo melhor o papel de cada integrante do grupo, assim como sua função de proteção evolutiva sem interferência no progresso da humanidade.

Os Eternos ganhou mais uma série limitada, de nove edições, em 2008 e 2009 por Charles e Daniel Knauf. Agora, em 2021, foi divulgado um novo título, com autoria de Kieron Gillen, que combina tudo o que aconteceu no passado e encaixa definitivamente a franquia na cronologia do MCU, com direito a elementos diretamente conectados a versão que está nos cinemas.

Deuses e Lendas representados por cada Eterno

O universo cinematográfico da Marvel já usou da mitologia em alguns de seus filmes, como em Thor, que são reinterpretações diretas dos mitos nórdicos. Thor, Odin, Loki, Hel — também conhecido como Hela — e o resto, todos entram no MCU. Os deuses da mitologia inspiram os Eternos, e criam eles em seu próprio mundo ficcional. Na maioria dos casos, a correlação entre uma figura mitológica e um Eterno parece óbvia, mas em outros, a conexão é mais turva.

Thena, interpretada por Angelina Jolie, é baseada na Atenas da mitologia grega. Nos quadrinhos, Thena é filha de Zuras, líder dos Eternos da Terra. Zuras e Thena se parecem com Atenas e seu pai, Zeus. Isso significa que Thena costuma ser confundida com a deusa Atenas, mas elas não são a mesma pessoa no mundo dos quadrinhos.

Na mitologia grega, Atenas é a deusa da sabedoria e da guerra. Nasceu do crânio de Zeus e portanto, possui conhecimento ilimitado. Embora possa ser agressiva, também governa sobre a paz e o artesanato. A personagem Thena é uma combatente feroz com uma mente militar brilhante.

Ikaris, interpretado por Richard Madden, é baseado em Ícaro, também da mitologia grega. Ícaro não era um deus, mas uma figura mítica. Na história, ele é mais conhecido por voar muito perto do sol, e é filho de um famoso inventor, Dédalo, que construiu o labirinto que abrigava o monstruoso Minotauro de Creta.

O rei de Creta não queria que ninguém soubesse como seu labirinto funcionava, então ele aprisionou Dédalo e Ícaro em uma torre. Mas o artesão genial projetou uma saída, construindo asas para si mesmo e Ícaro para que eles pudessem escapar. Essas asas eram mantidas juntas por cera. Notoriamente, Dédalo avisa Ícaro para não voar muito alto e nem muito baixo, já que poderiam derreter com o calor do sol ou ficarem úmidas, tornando-as inúteis.

Como alguns mitos, este é um conto de moralidade, para que uma pessoa não seja muito arrogante e complacente. Infelizmente, Ícaro sucumbe à arrogância, voando muito perto do sol, fazendo com que suas asas derretam e o façam cair para a morte.

Ikaris é conhecido por ser um excelente aviador que pode reorganizar moléculas de outras substâncias. Em certo sentido, isso também se encaixa porque o ápice da história de Ícaro acontece quando o sol reorganiza as moléculas de suas asas.

Sersi, interpretada por Gemma Chan, é baseada em Circe da mitologia grega. Em Eternos, ela tem uma forte conexão com a humanidade. Além disso, ela e Ikaris são almas gêmeas e seu relacionamento se estende por séculos.

Na mitologia, Circe é uma feiticeira poderosa, que por meio de uma combinação de magia e drogas, transforma humanos em animais. Quando o herói Odisseu encontra o caminho para sua ilha, ela transforma seus homens em porcos, mas Odisseu, protegido por um presente de Hermes, permanece imune. Ele a desafia a devolver seus homens, Circe o faz e, impressionada com Odisseu, o convida para ficar em sua ilha. Eles passam um ano juntos. Além disso, as duas são as mesmas nos quadrinhos.

Phastos, interpretado por Brian Tyree Henry, é baseado em Hefesto da mitologia grega. Na história, Hefesto é o deus da forja, o que faz sentido com o filme, porque Phastos é um grande inventor dos Eternos. As criações de Hefesto são elogiadas em todo o mito, forjando muitas armas, como o escudo de Aquiles e também esculpe a primeira mulher humana.

Makkari, interpretada por Lauren Ridloff, é baseada em Mercúrio da mitologia romana. Embora Makkari tenha a imortalidade padrão de um Eterno, a personagem também possui velocidade sobre-humana, sendo a mais rápida que existe. Além disso, pode pensar sobrenaturalmente rápido, permitindo que leia e processe informações rapidamente.

Este impulso de rapidez faz muito sentido quando se trata de Mercúrio, o deus dos viajantes e mercadores. Ele é associado a Hermes da mitologia grega, um deus conhecido por ter pés rápidos. As sandálias aladas de Hermes são icônicas. Mercúrio também atua como uma ponte entre deuses e mortais, muitas vezes servindo como uma espécie de mediador.

Gilgamesh, interpretado por Ma Dong-seok, é baseado na mitologia suméria. O Épico de Gilgamesh é um poema antigo da Mesopotâmia gravado na língua acadiana e existe como uma das primeiras peças da literatura nos registros. O poema apresenta o semideus Gilgamesh, rei da cidade-estado mesopotâmica de Uruk, como uma parte mortal e parte divino. Embora ele busque a imortalidade, nunca a obtém, e em vez disso, consegue uma compreensão do significado da vida.

A Epopeia de Gilgamesh conta uma história de amizade. Quando ele se torna muito arrogante, os deuses criam Enkidu como seu rival. Enkidu representa o mundo natural, enquanto Gilgamesh representa a ordem da sociedade. Os dois inicialmente brigam, mas se tornam amigos. Embora não haja nenhuma palavra sobre um irmão épico para o personagem em Eternos, seria interessante se isso fosse explorado.

Ajak, interpretada por Salma Hayek, é baseada no Ajax da mitologia grega. Ele também não é um deus, mas sim um ser humano excepcional. A força e bravura de Ajax lhe valeram muito renome, ficando atrás apenas de Aquiles. Nos quadrinhos, ele é arqueólogo, homem e um lutador.

Druig, interpretado por Barry Keoghan, não tem uma contraparte clara na mitologia. Nos quadrinhos, Druig vem das regiões eslavas, mas nenhumas das divindades parecem se alinhar com ele. Além disso, se especializou em manipular a realidade e gosta de voar usando plataformas de fogo ou terra que ele mesmo gera. Essa conexão elementar pode ter relação na origem mitológica dos druidas, afinal, seu nome lembra a palavra. Druidas são sacerdotes celtas conectados ao mundo natural, e embora sejam geralmente pacíficos, em certos mitos, eles eram vistos mais como feiticeiros.

Sprite, interpretada por Lia McHugh, tem uma conexão mais difusa com a mitologia do que outros Eternos. Existiu muitos sprites em toda a mitologia europeia. Como as definições mais amplas, eles são elfos ou fadas, e muitas vezes são envolvidos com travessura.

Como os sprites da mitologia, Sprite dos Eternos tem mais poder do que parece. Embora ela tenha vivido por séculos, continua presa à aparência de uma criança de 12 anos. Sprites folclóricos costumam agir infantilmente, e nos quadrinhos, esse era o caso a personagem. No entanto, no filme, a situação tem uma reviravolta, a mente dela envelhece, mas o corpo não.

Kingo, interpretado por Kumail Nanjiani, não tem uma associação mitológica aparente, mas pode ser baseado em Kingu da mitologia babilônica. De acordo com o mito, a mãe de Kingu, uma deusa, deu a Kingu a Placa dos Destinos, que ele usava como uma couraça e que lhe deu grande poder. Mais tarde, foi morto, mas os deuses usaram seu sangue para criar os primeiros humanos. O personagem compartilha das mesmas habilidades na luta e ambos parecem desejar um certo nível de poder.

Easter Eggs e referências

Além de todos os paralelos estabelecidos entre os heróis e figuras místicas, também há referências à Bíblia. Como a semelhança dos sete dias que eles têm para salvar a Terra com os sete dias que Deus precisou para criar o mundo, o que também aparece em forma de piadas. Sem saber como resolver o conflito com os Celestiais, a personagem Sprite chega a dizer: “O que vocês sugerem fazer? Separar todo mundo em casais e embarcar numa arca gigantesca?”.

No filme, quando há o reencontro da equipe no Domo (a nave deles) vários artefatos históricos aparecem, principalmente porque Makkari é uma colecionadora dessas peças. Pode-se reparar no Excalibur, espada do Rei Arthur; Tábua Esmeralda, um dos textos mais antigos relacionados à alquimia; e também o Santo Graal, cálice supostamente usado por Jesus Cristo na Última Ceia.

[Imagem: Reprodução/Marvel Studios]

Eternos também deixa um questionamento de qual época se passa na linha temporal no MCU, e o produtor Nate Moore, da Marvel Studios, afirmou em entrevista à revista Empire Magazine que ocorre no mesmo período de Homem Aranha: Longe de Casa, com o mundo se recuperando do ataque do Thanos e do retorno de metade da população mundial.

A obra faz menções diretas e indiretas à guerra contra ele. Primeiro, ocorre um diálogo entre Sersi e Dane Whitman logo após o professor descobrir que sua namorada é, na verdade, uma Eterna. Whitman não entende porque a equipe de heróis não interferiu no conflito contra o Titã Louco, ao que ela responde com uma das regras primordiais que eles receberam dos Celestiais: interferir apenas nos conflitos entre humanos e Deviantes.

Embora não seja mencionado nos filmes, nas HQs Thanos é um Eterno com uma condição chamada de Síndrome Deviante, ou seja, uma mutação no seu DNA que o concedeu algumas semelhanças com os Deviantes. Inclusive, esta é a razão pela qual ele não parece um humano como os demais da sua espécie.

O outro momento em que o vilão é mencionado está mais ao final do filme, quando Ajak conta para Ikaris o prazo que eles possuem para salvar a humanidade. Para a líder do grupo, o fato das pessoas terem conseguido reverter o cenário com um estalar de dedos é um motivo para que eles lutem pelos humanos.

[Imagem: Reprodução/Marvel Studios]

Também há, ao menos, duas menções aos personagens da DC. A primeira foi revelada em um dos trailers do filme, quando Sersi e Ikaris visitam a família de Phastos pela primeira vez, e o filho do Eterno compara o herói da Marvel ao Superman: “Você estava com capa e soltando laser pelos olhos”.

Chloé Zhao, diretora do longa-metragem, afirmou em entrevista ao ComicBook, que o Homem de Aço é um ser mitológico e que se responsabiliza por esse diálogo: “Em todo tipo de cultura há uma versão do Super-Homem. As pessoas que criaram o personagem dos quadrinhos, e os cineastas brilhantes que o trouxeram para a tela, estão fazendo uma interpretação moderna dessa mitologia”.

A outra ocorre quando parte da equipe vai até Thena e Gilgamesh. Diante do ajudante pessoal do Kingo, Karun (Harish Patel), Gilgamesh o chama de Alfred, mordomo do Bruce Wayne.

Além disso, o tio com quem Dane Whitman está brigado no início de Eternos é também um easter egg. Essa misteriosa figura é ninguém mais, ninguém menos que Nathan Gerrett, um dos personagens que já assumiu o título de Cavaleiro Negro nas HQs. Essa menção é importante porque, ao que tudo indica, o filme lança o professor em uma história de origem para tomar justamente esse posto. Primeiro, ele ganha de Sersi o anel com a insígnia da sua família e, na cena pós-crédito, herda de Garrett a Espada de Ebano, ambos acessórios do Cavaleiro Negro.

Whitman não está sozinho quando descobre a Espada de Ebano: uma voz misteriosa o questiona “você tem certeza disso, Sr. Whitman?”. Embora sua figura não seja revelada na cena, sabe-se que se trata de Blade, que ganhará um filme, possivelmente em 2022, estrelado por Mahershala Ali.

[Imagem: Divulgação/Marvel Studios]

Em outra cena pós-crédito, Marvel mostra uma nova camada à história de Thanos ao apresentar o irmão Eros, com quem o Titã Louco tem uma relação de rivalidade. Interpretado por Harry Styles, o Eterno aparece se oferecendo como um aliado na jornada de Thena, Druig e Makkari para avisar os heróis do universo sobre os reais planos dos Celestiais. Vale pontuar que Eros não está sozinho: ele vem acompanhado de Pip, o troll.

MCU e o mundo da fantasia

Eternos é diferente de tudo que a gigante dos super-heróis já fez, a nova produção dirigida por Zhao aposta tudo em uma carga dramática: desenvolve personagens, expande horizontes, levanta reflexões e traz uma brisa de frescor ao Universo Marvel.

Os fãs da empresa são acostumados a sempre se manterem ligados em seus filmes. Desde a junção dos Vingadores, em 2012, é necessário estar atento aos mínimos detalhes e as junções entre diferentes obras a fim de uma conexão maior. Porém, isso não acontece no longa. Destoa do resto das produções da editora, já que apresenta uma narrativa autoral focada em si mesma, com arcos dramáticos dos seus próprios personagens, o que faz o espectador refletir sobre questões existenciais através da simplicidade de diálogos e contradições.

Com 2 horas e 37 minutos de duração do longa, o roteiro abre espaço para permitir a belíssima atuação de um elenco estrelado e múltiplas combinações de personalidades. Um leque de possibilidades é atingido, contendo desde Angelina Jolie dando vida a uma Thena multifacetada e complexa, lutando contra traumas e transparecendo toda a sua dor até Kumail Nanjiani e Brian Tyree vivendo personagens que transparecem seu lado carismático e cômico, abraçando o espectador e não afastando por completo a sensação de estar vendo um filme da Marvel.

Apesar de toda a excelência dos atores, de longe, quem brilha mais é a coragem do seu roteiro. Após 13 anos de filmes de origem baseados na “fórmula do sucesso Marvel”, Chloe Zháo abre mão de uma narrativa reciclada em um mercado já estabelecido e dá origem ao filme mais autoral desse universo de super-heróis. Com o andamento da obra, é possível entender que não se trata de mais um filme de construção para um universo maior, mas sim de uma obra que trabalha seus personagens, desenvolve ideias e promove a reflexão sobre questões mais profundas do que “o bem contra o mal”. 

[Imagem: Divulgação/Marvel Studios]

Eternos não é sobre heróis que lutam contra vilões e nem sobre expandir um universo cinematográfico, mas sim uma história bem contada sobre seres que, assim como os humanos, evoluem, se compadecem, são enganados e possuem o direito de se redimir e exercerem seu livre arbítrio.

Ao se aventurar para o drama, a obra abre mão de sequências de ação empolgantes e eletrizantes características da Marvel, dando lugar a diálogos longos carregados de questionamentos e incertezas que, ao final do filme, se traduzem em ações coerentes. Mesmo com a ausência de cenas empolgantes, os poucos embates são pontuais e muito bem executados.

O movimento dos personagens condiz com sua majestosidade e o certo “tom de superioridade”, dando origem a cenas muito bem coreografadas que parecem ter saído diretamente de uma peça de teatro. Portanto, devido a falta de pancadaria e destruição, muitos se frustraram com o tom do filme por apenas não terem recebido o que estavam acostumados a receber de outras produções do estúdio.

Os efeitos especiais das lutas também são muito simplistas e elegantes, tornando-se uma experiência agradável. Além disso, a figurinista Sammy Sheldon Differ, contou em entrevista ao ScreenRant, que trabalhou em conjunto com o grupo responsável por eles para complementar o visual das roupas e como foi esse processo de desenvolver as vestes, que também se diferenciam de tudo o que a Marvel já fez: “A ideia é que eles parecessem orgânicos. Esperamos que, quando os fãs assistirem ao filme, fiquem se perguntando de que tipo de material as roupas são feitas. Não queremos que as pessoas possam dizer: ‘Oh, é uma armadura’, ou ‘oh, é um traje de spandex”.

[Imagem: Divulgação/Marvel Studios]

Outro ponto a ser mencionado é a representatividade do filme. Sem fazer alarde nenhum na mídia para se vender, a produção apresenta um integrante gay e negro — com direito a um beijo nas telonas e outras cenas de afeto —, três protagonistas asiáticos, uma latina e uma heroína surda afro-latina, tudo no mesmo longa. Não há nenhuma representatividade forçada, todos os acontecimentos se desenvolvem organicamente e muito bem encaixados na história.

Eternos traz a mensagem de esperança na humanidade, na sua evolução e em seu potencial de se unir e se proteger. Eles estão presentes há milhares de anos na Terra, acompanhando a evolução humana, presenciando conflitos, genocídios, guerras, perdas, amor, construções de famílias e todas as emoções que a humanidade é capaz de sentir sem poder interferir. A jornada de autoconhecimento que os personagens percorrem no filme é sobre evolução, livre arbítrio e empatia. Além de aprenderem com os erros e não cometê-los novamente, protegem quem amam simplesmente por sentirem que é o certo a se fazer.

Com uma direção fantástica, roteiro muito caprichado, diálogos precisos e necessários, combates majestosos e pontuais e uma fotografia bonita, Eternos traz o lado mais dramático e humano da Marvel a tona, usando seus personagens como espelhos para os espectadores se permitirem mergulhar nas mais profundas emoções e sentimentos humanos.

Técnicas de Atuação

Já se perguntaram como os atores se preparam e estudam para entrarem em cena?

No mundo das artes cênicas, existe uma infinidade de estudos, técnicas e métodos de atuação que um ator pode e deve considerar ao entrar na sua personagem. 

Durante o processo de estudo do roteiro, o elenco passa por vários exercícios como controle vocal, linguagem corporal, estudo e processo de criação da personagem. Esses métodos são algumas ferramentas que ajudam os atores nessa empreitada, dando vida à essa história, que estão prestes a contar.

TÉCNICA 1: MÉTODO DE STANISLAVSKI OU ATUAÇÃO CLÁSSICA

Uma das mais importantes técnicas de atuação que existem e a que foi precursora de muitas, consequentemente, é a Técnica de  Stanislavski. Seu criador é o escritor e dramaturgo Constantin Stanislavski, nascido em Moscou. Intitulada de Método Stanislavski ou Atuação Clássica, ela consiste em estudar diversas capacidades humanas e treiná-las com a finalidade de as transformar em ferramentas no momento da performance do ator. 

Essas habilidades incluem: concentração, voz, memória emocional, análise textual e observação. Tal método trabalha com os sentimentos e experiências pessoais do ator que possam se comunicar com a história da personagem. Stanislavski inspirou diversos outros métodos de interpretação.

Dramaturgo russo, Constantin Stanislavski. [FOTO: Reprodução/ Portal dos Atores]

TÉCNICA 2: MÉTODO DE INTERPRETAÇÃO PARA ATORES OU O MÉTODO

Em paralelo a técnica de Constantin Stanislavski, outro método que ficou conhecido mundialmente foi o de Lee Strasberg. Chamado de  Método de Interpretação para Atores ou O Método,  foi desenvolvida pelo dramaturgo ucraniano, Lee Strasberg. 

A técnica consiste na ação do ator de desenvolver em si mesmo os pensamentos e sentimentos de seu personagem, com o objetivo de tornar sua interpretação o mais parecida possível com a realidade.

Este ator deve ativar suas próprias  memórias afetivas e sentimentais para facilitar na hora de trazer à tona as emoções do roteiro. Esse método é atingido com a ajuda de exercícios mentais e físicos com o auxílio de um preparador de elenco.

Os estudos sobre O Método se tornaram amplamente difundidos nas artes cênicas desde o alto escalão hollywoodiano até os iniciantes de carreira. Atores como  Jake Gyllenhaal – foi um adepto das técnicas de Strasberg durante o filme O Abutre (2014, dir. Dan Gilroy);  Shia Labeouf em seu longa-metragem Fury (2014, dir. David Ayer); e Joaquin Phoenix, no decorrer das filmagens do filme O Mestre (2012, dir. Paul Thomas Anderson). Estes são alguns dos famosos que se utilizam dessa técnica durante suas gravações.

Ator Jake Gyllenhaal, em O Abutre (2014) [ Foto: Divulgação/ Bold Films]

TÉCNICA 3: TÉCNICA DE STELLA ADLER

Houveram também talentosas artistas mulheres que se arriscaram em estudar a fundo os pilares da performance cênica, e assim traçarem seus próprios caminhos nos estudos da interpretação. Uma delas foi Stella Adler, atriz e diretora nova-iorquina, criadora do método conhecido como a Técnica Stella Adler, que se refere ao uso do poder de influência da imaginação do próprio ator durante a cena.  

Segundo Adler, é necessário que o ator ou atriz use de sua imaginação ativa para  adaptar a realidade da obra que está sendo trabalhada, de forma criativa. Com o intuito de chegar nesse resultado, o intérprete deve focar na criação do passado de seu personagem, como também na criação do local em que a cena acontece.

A atriz sofreu influências tanto de Stanislavski, quanto de Strasberg. Apesar de ter sido discípula de Stanislavski e ser conhecedora do Method Acting, Adler afirmava que ter como foco principal – durante a performance – o acesso às memórias reais do ator, não era uma caminho saudável.

TÉCNICA 4: TÉCNICA DE IMPROVISAÇÃO

Mais uma  grande estudiosa das teses de Stanislavski, foi a atriz Viola Spolin, autora de diversos livros sobre a Técnica de Improvisação. Spolin defendia que os jogos teatrais ensinados aos atores em fase de formação podem ajudá-los em cena, ao trabalhar com a espontaneidade e com suas capacidades intuitivas e não ficar preso somente ao roteiro, é necessário dar voz à criatividade do ator.

O trabalho em grupo do elenco e desapego ao roteiro são noções básicas de todo ator que queira trabalhar com a liberdade dada a ele pelo diretor, segundo a atriz. 

A ferramenta da improvisação já foi e ainda é incentivada por muitos diretores, com o intuito de extrair do intérprete a maior naturalidade possível. No longa-metragem Laranja Mecânica (1971, dir. Stanley Kubrick), o ator britânico Malcolm McDowell seguiu sua intuição em uma das cenas mais tensas e cruciais do enredo. 
Seu personagem Alex, líder uma gangue de delinquentes, durante um de seus assaltos resolve molestar a dona da casa em que o crime está acontecendo. Para “suavizar”a intensa cena, McDowell começa a cantarolar o clássico de Gene Kelly, Singing In The Rain. Kubrick se encantou com a improvisação de McDowell e deixou a cena nos cortes finais do filme, mesmo sendo resultado de uma ação não roteirizada.

Ator Malcolm McDowell, em Laranja Mecânica (1971). [Foto:Divulgação/Warner Bros. Pictures]

TÉCNICA 5: TÉCNICA GROTOWSKI

Além dos métodos americanos, outro método muito importante na preparação de um elenco foi o método implantado pelo diretor e teórico polonês das artes cênicas, Jerzy Grotowski. 

Muito impulsionado pelas teorias de Stanislavski e Brecht, ator e teórico teatral alemão, Grotowski acreditava que o ator deveria usar de suas experiências pessoais para a construção dos sentimentos do personagem, mas ele afirmava que é de responsabilidade do próprio ator cuidar da sua saúde mental.

Mas o que ele quer dizer com isso? Pode soar óbvio ou até mesmo duro essa fala de Grotowski, porém é muito mais fácil de entender seu ponto de vista quando vemos atores como Heath Ledger, durante o filme O Cavaleiro das Trevas (2008, dir. Christopher Nolan). No longa-metragem, onde ele interpretou o lendário Coringa, Ledger afirmou ter tomado medicamentos para dormir durante as gravações do filme por conta da carga emocional intensa que o personagem exigia dele.

Ator Heath Ledger, em O Cavaleiro das Trevas (2008). [Foto: Divulgação/ Warner Bros. Pictures]

Ao traçar este paralelo, conseguimos entender o que Grotowski quis dizer, o ator deve acreditar nas palavras de seu papel mas deve-se permanecer ciente de sua própria realidade e identidade. 

Segundo o alemão, isso pode ser atingido por meio de uma leitura de roteiro acompanhada de uma intensa preparação psicofísica, trazendo sempre o ator a sua realidade e não havendo uma identificação psicologicamente íntima com o papel.   

TÉCNICA 6: TÉCNICA DE PETER BROOK

Outro grande dramaturgo que decidiu colocar sua criatividade e seu conhecimento à prova na formulação de mais uma técnica cênica foi o diretor de elenco londrino, Peter Brook. Ele parte do pressuposto que a platéia deve simpatizar com as emoções das personagens, do contrário, o ator falhou durante sua interpretação.

É necessário que haja uma ligação direta entre os atores e seu público, essa ligação deve acontecer por meio do ato de provocar uma intensa reação emocional dos espectadores. Brook afirma que para conseguir esse efeito era preciso deixar o público desconfortável, contorcendo-se de dentro para fora. Ir além do roteiro, e expressar as emoções de forma física era a receita para firmar essa comunicação entre o artista e sua platéia.

TÉCNICA 7: EXERCÍCIO DA REPETIÇÃO

Sob influência do mestre ucraniano Lee Strasberg , o  ator nova-iorquino Sanford ‘Sandy’ Meisner ficou conhecido por criar uma técnica, resultante dos seus estudos sobre o método de Strasberg, chamada de Exercício da Repetição.  Ela diz respeito à concentração que o ator deve ter, este não pode focar somente no que está fazendo mas deve prestar atenção no outro, naquele instante, como se mais nada importasse no momento da ação, no palco.

Com o intuito de melhorar a compreensão de seus alunos acerca do seu método, Sandy desenvolveu um exercício de preparação para atores chamado de Exercício de Repetição, onde os atores em cena devem sentar-se frente a frente com o outro e repetir a mesma frase com diferentes intenções. 

A cada repetição a entonação, a linguagem corporal e as feições mudam, trazendo à tona a espontaneidade na relação entre os atores.

Dramaturgo, Sanford ‘Sandy’ Meisner. [Foto: Reprodução/ Portal dos Atores]

As possibilidades e artimanhas usadas durante a construção de um personagem são infinitas, e um ator acompanhado de um diretor de elenco experiente sabe usar essas ferramentas para trazer verdade durante sua performance. 

É necessário frisar que muitos desses métodos surgiram do teatro e sofreram muitas adaptações ao longo dos anos para poderem ser usados na frente das câmeras. Além disso, cada artista durante sua carreira e seu processo de experimentações desenvolve sua própria maneira de praticar os métodos de atuação, que hoje são ensinados aos jovens atores como dogmas das artes cênicas.

Trilhas sonoras em filmes de terror

Todos sabemos que uma ótima trilha sonora pode mexer com o público e fazer toda a diferença. E em filmes de suspense e terror, música é o que não pode faltar.

Quando bem feita, ela pode se tornar tão marcante que mesmo após décadas, ainda a associamos automaticamente a situações de perigo e medo. Um exemplo disso é a do filme Tubarão (1975), composta por John Williams. Sua icônica trilha é referência até hoje, instantaneamente reconhecível e sem ela, a cena perderia todo seu impacto. Confira a diferença:

O que torna uma trilha sonora assustadora?

Vários elementos contribuem para causar o sentimento de medo, desde os instrumentos utilizados até o timing do filme. Entretanto, existem certas músicas, acordes e técnicas que são comumente usadas e adaptadas em filmes de terror.

Alguns dos casos mais comuns são sons não lineares, que desencadeiam o medo de ser perseguido por predadores; o trítono, também conhecido como “Som do Diabo”, é o intervalo de três tons inteiros entre duas notas, que gera um som dissonante e resulta na sensação de tensão; instrumentos intensos como violinos, pianos e waterphones; vozes e gritos. Um dos casos mais memoráveis é o da música Dies Irae.

A música é um hino em latim do século XIII sobre o Juízo Final, tocada em Missas Réquiem, homenagem aos mortos. Com uma variedade de versões, que incluem até Mozart e Giuseppi Verdi, esteve sempre relacionada à morte. Assim, muitos compositores a utilizam com essa função.

Ela pode ser encontrada em centenas de filmes de todos os tipos e épocas, porém nos filmes de terror o impacto é totalmente diferente. Laranja Mecânica (1971), Alien (1979), O Iluminado (1980), Sexta-Feira 13 (1985, 1986 e 1988) e Rua do Medo: 1994 e 1666 (2021) são apenas alguns exemplos famosos do uso nesse gênero de filme. Uma vez que você identifica a música, é possível reconhecê-la em todo lugar.

Além disso, como visto anteriormente, a música de um filme é o que move o público e intensifica e aprimora a experiência do espectador. O terror é sobre emoção crua e visceral, tem como foco os medos humanos primordiais ou atuais.

Muitos outros filmes de terror têm trilhas marcantes, sejam eles Halloween (1978), filme de sustos, com uma música agitada, que lembra batimentos cardíacos e te faz ficar cada vez mais nervoso; o terror psicológico Corra (2017) com um coral em suaíli, onde você não consegue entender o que é dito, o que deixa espaço para imaginação; ou o alto som dos violinos estridentes de Psicose (1960) incomodam e deixam o telespectador tenso com o que está por vir.

A música se sincroniza com as facadas da cena e o que a faz ficar ainda mais envolvente e assustadora. O compositor Bernard Herrmann fez uma trilha sonora única – só de escutá-la é possível reviver a cena e trazer todos esses sentimentos à tona. Logo, todos realizam a sua proposta: o medo.

Trilha Sonora de Psicose (1960)

A trajetória das bruxas do cinema: A evolução e os clássicos da feitiçaria nos filmes e séries ao longo dos anos

As bruxas são as protagonistas do Halloween e no cinema não é diferente. O Mágico de Oz (1939), A Feiticeira (1964),  Elvira: A Rainha das Trevas (1988), Convenção das Bruxas (1990) e Abracadabra (1993) são alguns exemplos de filmes e séries em que as personagens foram retratadas de diferentes formas – tanto na sua aparência e modo de se vestir como na personalidade e no estereótipo de bruxa boa ou má.

A Bruxa Má do Oeste, em O Mágico de Oz, foi desenvolvida com o típico estereótipo ocidental: pele verde, verruga, nariz pontudo e jeito maldoso. Os contos de fadas da Disney sempre apresentavam tais personagens como pessoas feias, ou seja: fora do padrão; Além dos elementos de composição como o gato preto e o caldeirão. 

A princípio, o cinema enxergava as feiticeiras sob uma perspectiva negativa, por isso a representação dessas mulheres era feita de uma forma horrorosa. Temos por exemplo a Bruxa do 71 em Chaves (1971), que por ser caracterizada como feia e medonha, era associada como bruxa pelas crianças da vila (mesmo não sendo uma).

A Bruxa Má do Oeste em cena em ‘O Mágico de Oz’ (Foto: Reprodução)

Já Samantha Stephens, protagonista de A Feiticeira (1964), quebrou tais paradigmas sendo uma típica garota americana, como é citado no primeiro episódio, não seguindo essa construção em sua personagem.

Ao longo da série há um desenrolar de uma narrativa paralela a da imagem pejorativa que a mídia passa. Em especial o capítulo ‘As bruxas estão à solta’, quando o marido de Samantha, James Stephens, é contratado para produzir uma campanha para o Halloween. O cliente de Stephens quer utilizar o típico estereótipo norte americano de bruxas como seres ruins, mas Samantha aconselha e pede ajuda a James para promover a ideia de que elas também podem ser pessoas bonitas e gentis.

A Feiticeira – “As Bruxas estão à solta” (Foto: ABC Photo Archives/Disney General Entertainment Content via Getty Images)

A Idade Média e a Santa Inquisição foram épocas que influenciaram nesse modelo de caracterização de que as mulheres são sedutoras e mensageiras do Diabo, ideal seguido pela indústria cinematográfica até hoje – são diversas  as histórias de perseguição às mulheres. Muitas eram taxadas de feiticeiras por seus conhecimentos em medicina natural, considerados encantamentos contra a Igreja Católica e suas preces da época. 

É possível ver essa relação em As bruxas de Eastwick (1987) e Elvira: A rainha das trevas (1988), que já seguem a linha cativante e bela: com roupas mais sexy, decotes e pautas sobre a liberdade sexual em uma sociedade conservadora, as bruxas passam a transmitir outro olhar ao telespectador, que agora já tinha como maioria o público jovem.

Susan Sarandon, Cher e Michelle Pfeiffer em cena de As Bruxas de Eastwick (1987) (Foto: Reprodução)

Salém é outro grande exemplo. A pequena cidade no estado de Massachusetts, Estados Unidos, ficou conhecida pelo maior julgamento e caça às bruxas da história, que resultou na prisão e condenação à morte de mais de 200 pessoas – dentre elas, três mulheres pobres consideradas as “Bruxas de Salém”, que foram enforcadas em público. Em 1692 a cidade era uma colônia inglesa puritana comandada pela Igreja Católica que comandava a inquisição e utilizou trechos da Bíblia fora de contexto para provar o pecado. A cidade também teve grande influência no cinema, sendo sempre considerada o lar das feiticeiras.

Os anos 90 trouxeram a essência cômica e infantilizada para o universo das bruxas, apaziguando o terror, como é visto no clássico filme da Disney, Abracadabra, que conta a história das irmãs Sanderson: Sarah, Winifred e Mary, que foram banidas de Salém pela prática da magia. Com roupas medievais, chapéus pontudos e vassouras, além dos encantos  que são feitos com músicas e danças, o longa mostra mais uma versão das bruxas em filmes.

Sabrina Spellman, Sabrina a bruxinha adolescente e O mundo sombrio de Sabrina (Esquerda, fonte: Viacom Productions/Paramount Television; Direita, fonte: Warner Bros. Television/Netflix)

O fim dos anos 1990 também trouxe a série, filme e desenho animado, Sabrina, a bruxinha adolescente (1996), que manteve a essência de A Feiticeira, sendo Sabrina uma jovem com vida dupla e sem o estereótipo ocidental do que seria uma bruxa. Posteriormente o reboot, O mundo sombrio de Sabrina (2018), trouxe, novamente, uma versão mais macabra com elementos de terror, opostos à série de 96.

Por mais que ao longo dos anos, o cinema tenha alterado a caracterização das bruxas, o estereótipo norte americano foi se quebrando conforme o contexto histórico e  o momento em que vivia o movimento feminista – que desempenhou grande influência na caracterização dessas personagens. O filme A Bruxa (2015) mostra essa relação sobre as mulheres do século 17 que eram retratadas como feiticeiras por não se encaixarem no padrão da época.

Seja em filmes cômicos, infantis ou de terror, as bruxas más não são mais representadas como feias, dentro do padrão de beleza ocidental,  com pele verde e nariz longo, igual era a Bruxa Má do Oeste em O Mágico de Oz. Os elementos de caracterização: chapéus pontudos, roupas medievais e vassouras continuam, porém não mais são utilizados como distinção entre as boas e más, tendo, por fim, a busca por quebrar esse padrão que as desvaloriza

O reconhecimento de ‘Garota Infernal’ como um clássico cult feminista

Em 2007, Megan Fox protagonizou Transformers ao lado de Shia LaBeouf e, graças à popularidade da franquia, foi considerada símbolo sexual na época. Em 2009, Garota Infernal, dirigido por Karyn Kusama e roteirizado por Diablo Cody, chegou aos cinemas e, apesar de não ser um sucesso de bilheteria, foi um marco na carreira de Megan. Garota Infernal não foi bem recebido no início, porém, após anos, conquistou seu reconhecimento e foi do fracasso à um clássico cult feminista.

O longa-metragem conta a história de Jennifer (Megan Fox), uma líder de torcida que é sacrificada por membros de uma banda e, ao ser possuída por um demônio, começa a matar garotos. Enquanto a maldosa Jennifer está satisfazendo seu apetite com carne humana para sobreviver, sua amiga nerd Needy (Amanda Seyfried) descobre o que está acontecendo e promete acabar com o massacre.

Recentemente, discussões que buscam analisar o motivo desse reconhecimento tardio surgiram nas redes sociais e, em 2018, Kusama e Cody revelaram ao BuzzFeed que a campanha de marketing sexista do estúdio de cinema 20th Century Fox fez com que o lançamento do filme tenha sido desastroso. O problema que se sobressai nunca foi a crueldade de Megan Fox devorando homens brutalmente, mas a hipersexualização e objetificação feminina produzida a partir do male gaze.

Megan Fox em Garota Infernal (2009) [Imagem: Reprodução/Tumblr]

Kusama e Cody produziram Garota Infernal para atrair mulheres da mesma idade que as personagens principais Jennifer e Needy, mas perceberam na pós-produção que o estúdio só tinha interesse em vender o filme com base no status de símbolo sexual emergente de Megan Fox. “Eu acho que houve uma percepção generalizada de mim como um súcubo raso, se isso faz algum sentido, por pelo menos durante a primeira década da minha carreira”, desabafou Megan em entrevista ao jornal norte-americano The Washington Post.

Ademais, em entrevista ao podcast History of Horror: Uncut, a atriz também revelou como acredita que a “fama de egoísta”, da qual ficou conhecida na época, fez Garota Infernal ser um fracasso. “Por causa da minha imagem e quem eu era para a mídia na época, o filme nunca teve chance. Eu tive uma desavença com uma pessoa que trabalhava na indústria. Isso aconteceu quando eu estava na turnê de imprensa para divulgar o filme. Acho que tudo explodiu de vez”, comentou Fox sobre quando, durante as filmagens de Transformers, foi desrespeitada por parte da produção.

Em 2009, em uma entrevista com a revista Wonderland, Megan chamou o diretor de Transformers, Michael Bay, de tirano e o comparou com Hitler. Em compensação ao comentário da atriz, uma carta anônima foi publicada no site do diretor, chamando Fox de “vadia hostil”, “sem graça”, “sem classe” e, além disso, afirmando que a atriz deveria ser “estrela pornô”.

Megan Fox em Garota Infernal (2009) [Imagem: Reprodução/Tumblr]

Porém, de acordo com Megan, essa percepção começou a mudar nos últimos anos, principalmente com o surgimento de movimentos em prol das mulheres como o Me Too, que ganhou força em 2017. O movimento Me Too encorajou as mulheres a compartilharem histórias de abuso verbal e físico, assim como assédio e violação sexual, após a forte acusação contra o produtor de Hollywood, Harvey Weinstein, que foi desmascarado como um predador em série.

Tragicamente, a história de Fox não é um caso singular, uma vez que, ao longo da história, a indústria do entretenimento rotineiramente persegue muitas mulheres famosas a fim de derrubá-las sem nenhuma delicadeza. Em fevereiro, por exemplo, o documentário Framing Britney Spears: A Vida de uma Estrela foi lançado e o caso de Spears ganhou mais espaço na mídia – o pai de Britney Spears, Jamie Spears, tinha a princesa do pop sob tutela há 13 anos, desde que a imprensa revelou indesejadamente problemas conjugais e familiares de Britney entre 2007 e 2008, que fez com que a saúde mental da cantora fosse seriamente afetada.

Britney Spears e Megan Fox comandam uma extensa lista de mulheres que foram injustamente destruídas pela imprensa e, consequentemente, pelo público. “Eu estava tão perdida e tentando entender, tipo, como eu deveria sentir valor ou encontrar um propósito neste inferno horrendo, patriarcal e misógino que era Hollywood na época? Porque eu já havia me manifestado contra isso e todos, inclusive outras mulheres, me receberam de uma forma muito negativa”, relembrou Fox na entrevista ao The Washington Post. Hoje, a atriz diz estar orgulhosa de desabafar contra os maus-tratos às mulheres “uma década antes de se tornar popular”.

Em maio, mais de uma década após o lançamento de Garota Infernal, Olivia Rodrigo homenageou a comédia de terror com o clipe de seu single de sucesso good 4 u. Em julho, em entrevista ao Who What Wear, Megan afirmou que acredita que Garota Infernal estava à frente de seu tempo e comentou sobre a mudança de percepção do público sobre o filme ao dizer que o longa-metragem continua a ter um novo ressurgimento e renascimento. “As adolescentes agora estão recém descobrindo e estão apaixonadas pelo filme. É mais relevante agora, eu acho, do que era quando foi lançado”, disse Fox.

O consenso entre os fãs de Garota Infernal – incluindo quem já difamou a produção – é que o filme foi vítima do tempo. O mundo, assim como a cultura, está constantemente mudando, portanto, Hollywood e o público também se tornaram mais receptivos às flexões de gênero, às “mulheres difíceis” e aos temas feministas que Kusama e Cody quiseram mostrar em 2009. Nesse período, a mentalidade do público, infelizmente, prejudicou a percepção sobre o longa-metragem.

Há 12 anos, Diablo Cody quis escrever papéis que conseguissem oferecer algo às mulheres e contar histórias a partir de uma perspectiva feminina. Karyn Kusama ficou interessada na ideia de Cody, porque percebeu que a história, em sua essência, era um filme de terror feminista. Desse modo, elas quiseram subverter o modelo clássico da mulher sendo aterrorizada e fugir corajosamente de costumes misóginos.

“Se um homem escrevesse um filme com a frase ‘o inferno é uma adolescente’, eu rejeitaria isso, mas eu tenho permissão para dizer isso porque eu era uma. Acho que o fato de sermos uma equipe criativa feminina nos deu permissão para fazer observações sobre alguns dos aspectos mais tóxicos da amizade feminina”, disse a roteirista Cody ao BuzzFeed.

Megan Fox e Amanda Seyfried em Garota Infernal (2009) [Imagem: Reprodução/Tumblr]

Hoje, a obra cinematográfica de Kusama e Cody está sendo redescoberta como um clássico cult feminista e recebendo o carinho que merecia ter ganhado desde o início. Jennifer é mais que uma personagem fictícia sexualizada, mas o pensamento heteronormativo da crítica na época e o apagamento do público-alvo (o cis-feminino e LGBT) contribuíram com a má interpretação que fizeram em 2009.

“O filme estava à frente de seu tempo e, embora eu ache que há um argumento de que não o comercializaram de forma adequada, eu genuinamente não acredito que as pessoas estavam prontas para um filme como aquele naquela época em nossa sociedade e cultura”, confessou Megan também ao BuzzFeed. “Eu também acho que o filme pode ter sido ofuscado pela relação implacável de natureza vampírica que a mídia tinha comigo naquela época. Estou feliz por termos visto uma mudança na consciência coletiva e que agora as pessoas são capazes de apreciar o filme retroativamente.”

Garota Infernal é, com certeza, um filme sobre uma líder de torcida “devoradora de homens”, contudo também é assumidamente uma representação sobre a figura feminina, centrado nos perigos de ser uma mulher em um mundo machista, sobre a toxicidade da codependência e o significado de amar e se libertar de alguém que é ruim para você.

[Resenha] ‘O Menino que Matou Meus Pais’ e ‘A Menina que Matou Os Pais’

O caso que chocou o Brasil em 2002, o  homicídio cometido por Suzane Von Richthofen, Daniel e Cristian Cravinhos, ganhou seu longa-metragem disponibilizado pela Amazon Prime, na sexta-feira do dia 24/09. A expectativa pelo filme começou com a divulgação de seu trailer em fevereiro de 2020, mas sua estreia foi adiada devido a pandemia, chegando às telas de casa somente em 2021.

É necessário pontuar que o longa-metragem foi escrito e produzido seguindo uma ordem narrativa, que leva em consideração os depoimentos dos autores do crime. Tal ordem é de extrema importância para a compreensão dos fatos.

 Inicialmente, segundo o roteirista Raphael Montes, o enredo reunia os pontos de vista de dois dos três autores do crime – Suzane e Daniel – em um só roteiro. Depois de muitas discussões o diretor Maurício Eça propõe a inovação de criar uma experiência narrativa ainda mais completa: cada ponto de vista ganhou seu próprio filme.

Mas qual a ordem correta dos filmes, para o entendimento da história? De acordo com Maurício Eça, deve-se começar a experiência pelo ‘O Menino que Matou Meus Pais’ e dar continuidade com ‘A Menina que Matou Os Pais’. 

A história ocorreu no início dos anos 2000, no Campo Belo, bairro de classe média alta na Zona Sul de São Paulo. Marísia, Manfred, Suzane e Andreas Von Richthofen formavam aparentemente uma família normal, bem reservada e extremamente culta e bem instruída. O casal, Marísia e Manfred, sempre proporcionaram as melhores oportunidades de estudo, conforto e lazer para Suzane e seu caçula.

Família Von Richthofen [Foto: Wikimedia Commons]

Andreas era muito interessado por aeromodelismo, e em 1999 conheceu seu professor, Daniel Cravinhos, que logo demonstrou interesse pela sua irmã mais velha. Pouco tempo depois, Suzane e Daniel começam um relacionamento que resultou em empréstimos, muito uso de drogas, descontentamento da família Richthofen em relação ao namoro e o eventual homicídio. 

Na fatídica noite do dia 31 de outubro de 2002, Suzane e Daniel deixam Andreas na LAN house Red Play e supostamente dirigem-se a um motel. Depois, Suzane busca Andreas e deixa Daniel em casa. Ao chegar na casa dos Von Richthofen, os irmãos encontram-na com sinais de invasão. Suzane liga para o namorado e para a polícia, que logo menos chega ao local, fazem a ronda e encontram mortos os pais da adolescente no quarto do casal localizado no segundo andar da residência. 

A filha mais velha não esboça nenhuma reação de sofrimento com a confirmação de morte dada pela polícia, fato que aguça as suspeitas das autoridades. Rapidamente, a casa foi interditada e o caso ficou mais “incomum” a cada nova pista, reação ou fala de Daniel e Suzane. 

Os investigadores começam a suspeitar de uma possível participação do jovem casal na autoria do crime. Depois de muitas apurações, a polícia chega até Cristian Cravinhos, irmão mais velho de Daniel, através de uma compra suspeita feita pelo jovem usando o dinheiro dos Von Richthofen. Cristian confessa sua participação no crime. Assim, as confissões vêm à tona e o casal descreve minuciosamente como planejaram o assassinato.

Manfred e Marísia foram golpeados na cabeça por Daniel e Cristian. A mãe de Suzane não morreu instantaneamente, pela surpresa dos irmãos Cravinhos, que finalizaram o assassinato, sufocando-a com toalhas molhadas. Finalizado o assassinato, a filha do casal se encarrega de montar uma cena de latrocínio para despistar as autoridades.

Irmãos Von Richthofen no enterro dos pais. [Foto: Flávio Grieger/ Folhapress/ Arquivo]

A cena inicial de ambos os filmes retrata a chegada da viatura de polícia à casa, e todo o enredo gira em torno dos momentos de tensão, jogos, e manipulação vividas pelo casal, que culminaram na tragédia. 

Os longas-metragens são repletos de saltos no espaço-tempo entre as memórias dos autores do crime e o dia do julgamento, que ocorreu 4 anos após o ocorrido. 

Quando é feita a análise de qualquer narrativa em que a personagem principal também é narradora precisamos prestar atenção nos mínimos detalhes da história para identificar as falhas da narrativa, já que o narrador é parcial, e isso não seria diferente na análise desses dois filmes. Tanto a versão de Suzane como a de Daniel possuem falhas e discordâncias por se tratarem do ponto de vista de dois agentes envolvidos emocionalmente no enredo.

Detalhes como figurino, cabelo e maquiagem do filme foram analisados em diversas entrevistas, reportagens e takes dos próprios depoimentos dos assassinos, e o resultado não deixou nada a desejar!

A forma como o figurino foi empregado na trajetória dos personagens traz uma cara nova aos envolvidos na história, sem necessariamente distorcer suas personalidades. Sabe-se que uma das táticas judiciais de Von Richthofen durante seu julgamento foram as roupas infantis e a fala mansa da acusada, e os figurinistas souberam trazer um “novo ar” de inocência para a personagem, sem perder a fidelidade ao que foi real.

A equipe de arte e figurino utiliza da semiótica, ciência que estuda os signos e simbologias para o processo de significação na natureza e cultura, em pequenos detalhes durante o longa. A toalha preta (em uma versão) e branca (em outra versão) que Daniel veste no pós-banho do seu aniversário, ou até mesmo o terço que Suzane usa durante seus depoimentos no dia do julgamento. 

Carla Diaz como Suzane em ‘O Menino que Matou Os Meus Pais’ (2021) [Foto: Reprodução/ Youtube]

A sincronia entre a luz e a trilha sonora em momentos de tensão nos dois filmes, principalmente nas cenas de uso de drogas da Suzane ou na cena em que Daniel e sua namorada planejam o homicídio em ‘A Menina que Matou Os Pais’ foi muito bem pensada pelo diretor de arte e fotografia.  

 A atuação, no entanto, deixou um pouco a desejar em certos momentos. Alguns maneirismos da atriz Carla Diaz, que interpreta a Suzane, foram muito bem estudados e analisados para incorporar o papel, principalmente nas cenas em que Von Richthofen dava seus depoimentos em julgamento. 

Já em outras cenas, a atuação peca pelo seu exagero nas atitudes e abordagens das personagens. Ao comparar ambos os filmes, certos atores se saíram melhor em uma versão do que em outra, como foi o caso do ator Leonardo Bittencourt (Daniel Cravinhos). Sua versão do assassino em ‘O Menino que Matou Meus Pais’ entregou mais verdade durante a performance do que no filme em sequência. 

Essa divisão do projeto, feita por pontos de vista diferentes, permite a interpretação de mesmos eventos através de uma narrativa em que o próprio narrador se isenta da culpa. Alguns ótimos exemplos disso são, por exemplo, a cena do parque em que na visão de Suzane, Daniel irrita-se com o serviço de um hotel barato; e em contrapartida na visão de Daniel, Suzane ironiza a pousada em que Daniel está hospedado pela condição financeira do rapaz.

Outro momento importante para a análise do filme, é quando em ‘A Menina que Matou Os Pais’, a protagonista chega aos prantos na casa de Cravinhos e para convencê-lo a entrar na empreitada de matar seus pais, alega que Manfred é um pai alcoólatra e abusivo. Já pelo ponto de vista de Suzane, a mesma afirma que naquele momento sem ter tido forças para enfrentar seus pais, ela aceitava tudo o que Daniel falava, e em suas próprias palavras finaliza dizendo que para ela era “Deus no céu e Daniel na Terra”.

Carla Diaz e Leonardo Bittencourt em ‘A Menina que Matou Os Pais’.
 [Foto: Reprodução/Youtube]

Logo no final dos dois longas-metragens, o público é surpreendido com a quebra da quarta parede dos dois protagonistas. Em seu ponto de vista Suzane alegou que pouco tempo antes da tragédia ela não conseguiu questionar o parceiro e simplesmente o obedeceu. Por outro lado, Daniel afirma que neste mesmo momento estava “totalmente perdido”, tentando assimilar o que estava acontecendo.

Notar a escolha de vocabulário dos personagens principais torna-se ainda mais significativo ao saber que Carla Diaz (Suzane Von Richthofen) e Leonardo Bittencourt (Daniel Cravinhos) foram proibidos de qualquer tipo de improvisação durante as gravações, segundo a atriz em entrevista dada ao AdoroCinema.  A estratégia narrativa foi justamente pensada para ser o mais fiel possível a cada palavra dita nos depoimentos.

A escolha dos roteiristas e do diretor de trazer à tona essas duas versões de um dos casos que mais aterrorizaram a população brasileira, foi uma proposta interessante, levando em consideração a popularidade do caso e as diversas versões contadas pela mídia e pelos investigadores da época. 

À medida que o filme avança, ele proporciona uma visão clara acerca dos jogos de manipulação que já ocorriam na vida desses personagens muito antes da própria tragédia acontecer. Entender que toda história possui dois lados da verdade torna essa experiência cinematográfica ainda mais intensa. 

É importante ressaltar que nenhum dos dois filmes resume a verdade sobre o caso na sua totalidade. Toda obra bibliográfica pode usar da “boa e velha” licença poética para engajar ainda mais os espectadores durante a trama, e com toda certeza esse projeto não foi a exceção. O resultado final soube trazer dois filmes isentos de uma opinião concreta sobre a quem recai a culpa e ainda soube não romantizar a atrocidade.

Ter a oportunidade de assistir um caso verídico num projeto cinematográfico feito com tanto estudo e apuração do ocorrido, é realmente uma experiência única. O filme soube trazer a oportunidade aos espectadores de formarem sua própria opinião sobre o ocorrido e fica o convite para vocês, amantes do cinema, a também se questionarem sobre como esses personagens deixaram que suas vidas chegassem a esse ponto.

Confira o trailer:

Trailer Oficial de ‘O Menino que Matou Meus Pais’ e ‘A Menina que Matou Os Pais’.

[Resenha] Shang-Chi: como o primeiro herói asiático impacta a Marvel

Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis chegou aos cinemas no início do mês de setembro (02) e já fez história dentro da Marvel, elevando o nível do que está por vir na Fase 4.

O universo cinematográfico da Marvel, ou MCU, nos remete a uma incrível narrativa com uma fotografia impecável, reviravoltas, e claro, boas lutas. Shang-Chi é um bom exemplo disso, que permanece até hoje no topo das bilheterias, podendo ultrapassar o filme da Viúva Negra.

Interpretado por Simu Liu, o primeiro herói asiático mora em São Francisco e trabalha como manobrista em um estacionamento de hotel. Quando o pingente dado na infância por sua mãe Li (Fala Chen), é roubado por uma gangue de assassinos comandada pelo pai Wenwu (Tony Leung), ele e a melhor amiga Katy (Awkwafina), viajam a Macau para alertar a irmã de Shang-Chi, Xialing (Meng’er Zhang), que também se encontra em perigo.

A origem nas HQs

Desde 2006, a Marvel Studios tem planos de desenvolver um filme do Shang-Chi, principalmente porque o mercado chinês é campeão de bilheteria, como em Vingadores: Ultimato, que arrecadou mais de US$600 milhões. É perceptível como a companhia da Disney vem inserindo personagens asiáticos nas suas produções para mais identificação nos cinemas orientais, principalmente nos últimos anos, com o intuito de expandir a diversidade e a representatividade. Como todo bom herói do MCU se origina nas histórias em quadrinhos, conhecidas por HQs, vamos entender a importância dessa história do jovem chinês.

Criado por Jim Starlin (o mesmo criador de Thanos) e Steve Englehart, o Mestre do Kung Fu – como é conhecido no Brasil – estreou na revista Special Marvel Edition #15, em dezembro de 1973. Na época, as séries e filmes de artes marciais eram um sucesso, então o personagem acabou sendo inspirado por um grande fenômeno, Bruce Lee, possuindo até traços parecidos com o do lutador.

Imagem: Reprodução/Marvel Comics

Shang-Chi, filho do mentor criminoso Fu Manchu, significa “o surgimento e o avanço de um espírito”. Treinado desde a infância para ser uma máquina letal de combate, mas na realidade, não passa de uma marionete no império do pai. Quando mais velho, assassina um senhor indefeso e começa a enxergar que não está do lado dos “mocinhos”. Com isso, foge e inicia sua missão para combater o criador.

Nos primeiros anos de publicação, as histórias envolviam mais espionagem, principalmente quando ele atuava ao lado do Serviço Secreto Britânico, então mesmo não tendo nenhum superpoder, sempre se defendia dos adversários através dos conhecimentos de luta, especialmente as tradicionais chinesas. Com o tempo, ao se tornar mais “contemporâneo”, outros elementos foram adicionados e também foi integrado aos super-heróis.

A partir dos anos 2000, passou a ter alguns poderes para controlar o chi, ou seja, uma percepção sobre os elementos naturais, a energia de todos os seres vivos. Como exemplo, quando ele furou a barreira telepática criada por Jean Grey, dos X-Men. Shang-Chi também possui o manuseio de armas, como nunchakus e shurikens e é capaz de controlar o sistema nervoso, sendo resistente a dor, efeitos de drogas e venenos espalhados pelo sangue.

O personagem já teve os poderes do Homem-Aranha, a manopla especial para lutas desenvolvida por Tony Stark, e até usou as partículas Pym para se tornar gigante. Após ser exposto a uma radiação cósmica, desenvolveu a habilidade de criar inúmeras cópias de si, sendo mantida até os dias atuais.

Em 2011, nas Guerras Secretas, Shang-Chi adquiriu os poderes que permitem ficar inatingível e transformar os oponentes em pedra. É importante lembrar que ele participou de várias histórias da MCU: Vingadores, Homem-Aranha e os heróis de rua da Marvel, como Punho de Ferro e Demolidor.

Easter Eggs e Referências

A Marvel Studios é reconhecida por colocar easter eggs (segredos escondidos) por todos os filmes e com Shang-Chi não foi diferente! Os 3 momentos que merecem destaque são: Os Dez Anéis, Mandarim e Abominável.

Os Dez Anéis

Os Dez Anéis usados pelo Mandarim são originários de outro planeta, que foram trazidos à terra pelos Makluan, uma raça de alienígenas que se assemelham a dragões espaciais, como o vilão Fin Fang Foom.

O MCU mostra os artefatos muito antes de Shang-Chi. No primeiro filme do Homem de Ferro, a organização terrorista que captura o Tony Stark e faz com que ele construa a armadura, se chama Dez Anéis, derivada do grupo criminoso criado pelo pai do herói asiático. Além disso, em Homem de Ferro 3, colocam um Mandarim falso.

É importante ressaltar a importância dos poderes dos acessórios, o que fica bem claro como foco dos próximos filmes, com uma cena pós-crédito insinuando isso (sem mais spoilers).

Em uma das cenas da obra é possível perceber uma referência a Dragon Ball, um dos mangás e animes mais popular de todos os tempos. Durante a luta final, Shang-Chi consegue o poder dos dez anéis, girando-os rapidamente, o que nos remete a bola de fogo do Kamehameha usada por Goku. Além disso, o Grande Protetor, ser mágico de Ta-lo, se parece com Shenlong da franquia japonesa.

Mandarim

O filme traz o verdadeiro Mandarim, conhecido através da linha temporal por Rei Guerreiro, Mestre Khan e o Homem Mais Perigoso da Terra. A Marvel Studios desenvolveu um vilão mais profundo e complexo que mudou por amor, mas ao perdê-lo, foi consumido pela dor do luto, e se pauta em resgatar sua família.

Diferente das representações dos quadrinhos, como o cabelo comprido, cavanhaques e vestes largas, o MCU não quis repetir os estereótipos racistas. Essas representações, chamadas de “Perigo Amarelo” na época da Guerra Mundial e Guerra Fria, enxergavam os asiáticos como uma ameaça ao mundo ocidental.

Imagem: Reprodução/Marvel Studios

Abominável

O vilão do primeiro filme do Hulk, Abominável, está de volta com um visual um pouco diferente de 2008. Ele aparece em uma luta clandestina com o Wong, de Doutor Estranho. A relação entre os dois personagens indica que Emil foi treinado por ele para controlar seu temperamento e poderes. A especulação é de que esse vilão não seja apenas um easter-egg, mas sim um aviso de retorno na série She Hulk, com previsão de estreia para 2022.

Imagem: Reprodução/Marvel

O incrível mundo cinematográfico da MCU

Outro grande destaque, e talvez um dos mais importantes, é a construção dos efeitos especiais, fotografias, figurinos e lutas, já que acentuam toda a história oriunda dos quadrinhos. Perri Nemiroff, diretora cinematográfica do Collider, afirmou em seu twitter que todas essas categorias técnicas se juntam de modo que destacam o filme. Muitos outros críticos, como Wendy Lee Szany, da Associação de Críticos de Hollywood, avaliaram positivamente o longa.

Simu Liu incrementou o personagem apenas com artes marciais, já que o herói não possui um traje com altas tecnologias. O ator não sabia nenhuma defesa de combate mas desenvolveu as habilidades do clássico Kung Fu chinês, Muay-Thai, Krav Maga, Jiu-Jitsu, Hong Chen, Wushu, Silat, Boxe e lutas de rua. Em entrevista à Marvel, ele declarou: “Shang-Chi não é apenas um mestre de Kung Fu. É uma arma humana a quem foram ensinadas todas as formas possíveis de matar uma pessoa. Então, em muitos sentidos, seu estilo não é específico quando se trata de uma disciplina de artes marciais em particular”.

“Eu senti que tinha a responsabilidade de dar vida a esse personagem e isso significa mais do que apenas fornecer um rosto e uma voz. Tive muita sorte de ter tido muitas pessoas realmente talentosas ao meu redor para me treinar e de ter realizado com sucesso algumas das acrobacias. Por isso, o que você vai ver na tela sou eu mesmo fazendo as coisas e levando um chute no traseiro, dando golpes e tudo mais”

Simu Liu

Uma das cenas mais marcantes é a luta dentro do ônibus desenfreado pelas ruas de São Francisco. O ator Florian Munteanu, que interpreta o Punho de Lâmina em Shang-Chi, recentemente contou em uma entrevista ao ComicBook, que essa parte demorou 4 semanas para ser feita, e falou sobre as dificuldades desse momento: “Eu batia em postes e paredes o tempo todo, ia ao fisioterapeuta, aos médicos quase todos os dias. Mas, no final do dia, valeu a pena. Acho que criamos algo realmente especial“. O ator Liu também compartilhou no Instagram os bastidores desse espetáculo:

A soundtrack do filme é um grande destaque por contar com composições de Joel P. West e 88rising, NIKI e DJ Snake. O primeiro single divulgado foi Lazy Sing, cantada pelo rapper britânico 21 Savage, os indonésios naturalizados chineses Rich Brian e Warren Hue, e o chinês Masiwei. Além disso, de forma impecável, o Simu Liu em parceria com o 88rising, cantam Hot Soup. Confira as músicas completas na playlist feita pelo Portal Nação da Música:

Kym Barrett, figurinista, foi responsável por dar vida ao traje de Shang, trazendo a famosa veste vermelha do herói asiático, com referências da própria cultura oriental. A designer também desenvolveu as peças de Aquaman e O Espetacular Homem-Aranha

Imagem: Divulgação/Entertainment Weekly

Por fim, Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis é diferente do que conhecemos como “fórmula Marvel”. Ele consegue surpreender e entreter o público de diversas maneiras. Todas as cenas são muito bem desenvolvidas, desde as coreografias das lutas até os flashbacks, o que deixa a história fluida. Além disso, o carisma do elenco e sua relação com as HQs faz com que cada fã da Marvel se apaixone cada vez mais pela trama e por todo o MCU.