Por Trás do DNA: Ludovic de Saint Sernin

São raros os novos designers que conseguem em pouco tempo firmar uma identidade de marca madura e capaz de penetrar o imaginário do público e da moda. Entretanto, esta parece ser uma tarefa fácil para Ludovic de Saint Sernin, de marca homônima, que em pouquíssimo tempo já conquistou críticos aclamados da indústria e vestiu celebridades que vão desde Manu Rios até Bruna Marquezine. 

Finalista do prêmio LVMH de 2018 – que na época ele havia desfilado apenas 2 coleções – e vencedor do ANDAM prize do mesmo ano, Ludovic possui um trabalho que dialoga sobre o feminino a partir do masculino, criando roupas agênero que são pensadas na contramão do que a indústria sempre acompanhou: as peças são criadas com claras referências ao vestuário feminino, porém adaptadas ao masculino de maneira chic e provocadora. 

Retrato de Ludovic De Saint Sernin pelo site Business Of Fashion.

A elegância e a delicadeza de seu trabalho são capazes de camuflar o choque que muitas vezes o seu design causa, construindo assim imagens potentes que rompem com o binarismo de gênero da maneira menos caricata e tradicional possível: fugindo dos vestidos e das saias midi de alfaiataria plissada e adotando mini saias e cuecas slip bordadas por inteiro em cristais swarovskis, além de modelagens justas que fogem do clássico oversized muitas vezes associado ao agênero. 

História

Nascido em Bruxelas e criado na Costa do Marfim, Ludovic se mudou para a França com oito anos de idade. Já naquela época Ludovic adorava desenhar, mas a profissão de designer era algo ainda distante tendo em vista a carreira de seus parentes, que seguiram na área de direito e política.

Mas, mesmo assim, Ludovic decidiu legitimar a sua paixão e se formou em Design de Moda pela prestigiada Duperré Paris. Foi durante a faculdade que ele trabalhou para marcas como Dior e Saint Laurent, até enfim chegar à Balmain, onde ele ficou até 2016. 

Na Balmain, Ludovic era responsável pela área de pesquisa têxtil e de aviamentos e ornamentações, o que o aproximou do mundo da alta costura e possibilitou o desenvolvimento de uma linguagem detalhista e preciosamente rica que ele mais tarde incorporaria em sua marca homônima.

Ao perceber os rumos estéticos que a Balmain estava tomando e por não se identificar com esses, Ludovic deixou a casa em 2016 para fundar a sua própria marca. Mas engana-se quem pensa que a saída de Ludovic significou o rompimento total com a maison –  Olivier Rousteing, diretor criativo a frente da casa desde 2011, está sempre na primeira fila de todos os desfiles de Ludovic e não poupa elogios ao colega: “Ele é extremamente talentoso, extremamente generoso e extremamente humilde. Um trabalhador duro que atinge ótimos resultados. Eu admirava a sua vontade e sua habilidade de criar e esquecer as horas.”

Coleções e criações

A primeira coleção da marca, apresentada em Janeiro de 2018,  possui caráter experimental e apresenta diversos testes de modelagens e adornos que futuramente se tornaram assinaturas clássicas da label. Os recortes no centro-frente das cuecas e calças aparecem conectados por botões de pressão, dando assim os primeiros sinais da  icônica amarração em cadarço que viria a aparecer em futuras coleções. O mesmo acontece com as blusas-regata feitas a partir de recortes de couro e anéis de metal, que criam um visual à la Paco Rabanne e revelam uma modelagem mais “soltinha“, que mais adiante é atingida através do uso de malhas metálicas.

Imagem retiradas do Vogue Runway.
Imagem retiradas do Vogue Runway.

É a partir da segunda coleção apresentada por Ludovic que já vemos sinais da Ludovic de Saint Sernin que conhecemos hoje. Isso é um fato admirável, já que muitas vezes um designer necessita de 4, 5 ou 6 coleções para estabelecer a sua estética e encontrar a própria voz.

As famosas calças e cuecas com amarrações frontais e laterais em cadarço surgem, inspiradas em ninguém menos que Christina Aguilera – mais precisamente em seu look usado na capa do álbum “Stripped”. Essas são peças especialmente importantes para a label, já que se tornaram hits de venda da marca e acompanham todas as coleções desfiladas até então. O conjuntinho-pijama em linho é também introduzido nessa apresentação, juntamente com as peças adornadas com ilhós em metal e as bolsas em formato de sacolinha mini. 

Outro fator importante é o casting, que dessa vez inclui mulheres desfilando com peças feitas especialmente para elas, como os tops com a famosa amarração de cadarço. Ludovic sempre deixou claro que sua marca vestia todos – mesmo com apenas meninos desfilando na primeira coleção – mas com a inserção de mulheres no casting ele passa a desenvolver peças especialmente para essas.

Imagens retiradas do Vogue Runway
Imagens retiradas do Vogue Runway.

O que é interessante notar é que o número de modelos mulheres desfilando é sempre menor do que o número de homens em todas as suas apresentações, o que revela e confirma o fato da marca ter seus pilares fincados no vestuário masculino, independentemente da “feminilidade” das peças.

É na estação seguinte, a de outono 2019, que Ludovic atinge a maturidade estética que conhecemos hoje e finca a marca de vez no mood sexy-glam-minimal-chic que tanto amamos. A coleção é a mais “limpa” desde as duas primeiras apresentadas pelo estilista e carrega modelagens e conceitos que são explorados e revividos de maneira constante em futuras coleções.

É dela que saem as primeiras peças em cristais, que aparecem em um vestido de correntes vestido pela modelo Teddy Quinlivan e também em regatas e tops de malha metálica, além, é claro, da icônica cueca slip totalmente coberta em swarovskis, que se tornou um momento viral no Instagram. Sobre a coleção, Ludovic declarou: “Essa é a hora dos meninos terem seu movimento glam também, além, é claro, da liberdade de usarem o que quiserem!”

Imagens retiradas do Vogue Runway.
Imagens retiradas do Vogue Runway.

O glam passa então a estar presente nas coleções da marca através principalmente do uso de cristais e malhas metálicas. O ápice do uso desses materiais é a recente coleção de outono 2021, composta principalmente por tops e saias super brilhosos. O mais interessante é a maneira como Ludovic se apropria dessas matérias primas, que são comumente associadas ao vestuário feminino, e cria imagens delicadas e extremamente potentes ao mesmo tempo.

Fotos promocionais da marca.

Os momentos virais da marca também continuam, e é na temporada de primavera 2020 que a famosa saia-toalha é desfilada – gerando diversos memes entre a comunidade fashion e levando a internet à loucura. Este é um desfile muito importante para a label, já que marca a entrada oficial da Ludovic De Saint Sernin na semana de moda masculina – com a bênção de Rick Owens e Olivier Rousteing sentados na primeira fila. A tão falada toalha não se passava de um tricô confeccionado com materiais nobres, o que revela uma certa herança da época de Balmain do estilista. 

Podemos observar também na coleção de primavera 2020 o uso da bandagem em tops masculinos, algo que vem desde a temporada anterior e permanece até a primavera de 2021. O trabalho com bandagem é uma homenagem de Ludovic ao estilista Hervé Léger, internacionalmente conhecido por seus vestidos no mesmo material que moldam o corpo e as curvas das mulheres. O uso de bandagem talvez seja o aspecto do trabalho de Ludovic que mais represente a sua essência: ele foi capaz de transformar os modelos ultra sexy e femininos de Leger, vestidos nos anos 90 por supermodelos como Cindy Crawford, sinônimo de sex appeal, em peças masculinas extremamente interessantes e disruptivas.

Imagens retiradas do Vogue Runway.
Imagens retiradas do Vogue Runway.

Entre looks icônicos e diversos momentos de pura sex energy nas passarelas, Ludovic De Saint Sernin apresentou sua última coleção em outubro deste ano – com direito a Bruna Marquezine na primeira fileira, vestindo total look Ludovic de Saint Sernin outono 2021.

A coleção, que é a oitava apresentada pelo estilista, impressiona pelo trabalho artesanal de algumas peça também chamam a atenção os vestidos em cristais, que aparecem tanto no formato rede de peixe quanto em malhas metálicas. O visual é completamente sexy e chic, assim como tudo que Ludovic cria sem tiras de couro, que aparecem em versões tanto para homens quanto para mulheres: mais Ludovic, impossível.

Também tivemos a presença de conjuntos de linho — material pouco usado pelo estilista até hoje — com um afastamento do ”tecido de praia” para cortes sexy a lá Xtina, confirmando a identidade visual da marca. Em suma, a coleção traduz com maestria o DNA da marca.

Imagens retiradas do Vogue Runway.
Imagens retiradas do Vogue Runway.
Imagens retiradas do Vogue Runway.

Heranças

É normal encontrarmos heranças de estilistas e marcas da vanguarda no trabalho de novos talentos. É interessante pensar os reflexos destes no agora, e como o legado deixado por tais nomes pode ter pavimentado o caminho para novos criativos da indústria surgirem e novas estéticas proliferarem.

No caso de Ludovic, percebemos heranças do já citado Hervé Leger, mas há algo maior que é intrínseco no seu trabalho e na filosofia de sua marca que diz respeito ao jogo masculino X feminino — algo que herda referências de nomes como Helmut Lang e Jean Paul Gaultier, além da marca de Lingerie masculina Shirtology, popular em Paris nos anos 90.

O famoso minimalismo de Lang aparece nas cartelas e nos recortes estratégicos de Ludovic, revelando um equilíbrio estético potente entre o sexy e o casual. É interessantíssima a maneira como Ludovic consegue fazer do loungewear algo chic e elegante mesmo utilizando cores sóbrias — algo que ele alcança justamente através das fendas e da modelagem justa das peças.

A ideia de brincar com o diálogo entre masculino e feminino é algo que Jean Paul Gaultier costumava fazer muito nos anos de 1990. A diferença entre ele e Ludovic é que o primeiro buscava estilizar o homem a partir de trajes femininos já prontos, enquanto o segundo adaptou a linguagem feminina para o vestuário do homem — produzindo assim peças esteticamente novas e visualmente mais interessantes.

Conseguimos também observar heranças da marca parisiense Shirtology no trabalho do designer. A label, que ficou popular principalmente entre a comunidade gay nos anos 90, pode ser considerada precursora das cuecas slips criativas e do loungewear que Ludovic desfila hoje. A grande diferença é a maneira como Ludovic trabalha o sexy (elevando-o à máxima elegância) e, é claro, o seu casting.

Helmut Lang X Ludovic De Saint Sernin. Imagens retiradas dos arquivos da marca e Vogue Runway.
Shirtology X Ludovic De Saint Sernin. Imagens retiradas do arquivo da marca e Vogue Runway.

Comunidade

Não somente a maturidade estética e o firmamento de uma identidade de marca potente — adquiridas em tão pouco tempo — impressionam no trabalho de Ludovic. Com praticamente três anos e meio de história, a Ludovic de Saint Sernin já foi capaz de construir uma comunidade em torno da marca, composta por clientes que não só compram como traduzem a estética e o lifestyle da label, engajando a etiqueta no Instagram através de fotos autorais.

Tudo isso começou em 2018, logo após Ludovic se assumir gay. Na época ele criou o perfil @ludovidesaintserninX no Instagram, em referência ao famoso portfólio “X” do fotógrafo Robert Maplethorpe, com o intuito de postar uma curadoria de imagens que celebram sexo, amor e liberdade.

Mas tudo mudou em 2019, logo após a sua estreia na semana de moda masculina de Paris. Lembra do icônico look-toalha que gerou diversos memes entre a comunidade fashion? Ludovic começou a receber em suas DMs fotos de homens recriando o look em casa com suas próprias toalhas — pronto, nascia aí o #ludovicdesaintserninXchallenge.

Colagem de fotos que estavam disponíveis no Instagram @ludovidesaintserninX.

Com temas dos mais variados, que vão desde fotos na praia até cliques em edredons brancos, os seguidores do perfil são convidados a submeter suas fotos autorais para o desafio. Essa brincadeira acabou gerando um buzz enorme para a label, e estima-se que o engajamento da marca tenha crescido exponencialmente de maio do ano passado até abril deste ano, elevando a etiqueta em 36% na lista de performance em mídias sociais da Luxury Fashion EMV Index.

A conta, entretanto, encontra-se atualmente suspensa pelo Instagram, que considera o conteúdo — que celebra a liberdade sexual e o amor — “impróprio”.

Pandemia

Se para a maioria dos designers e marcas a pandemia impactou os negócios negativamente, com Ludovic aconteceu, surpreendentemente, o contrário. Em entrevista à Vogue, ele revelou: “[a pandemia] Impactou nossos negócios da melhor maneira possível. Nós tomamos conta de tudo; literalmente fotografamos toda a coleção na minha casa pelo meu Iphone, no meu namorado, e vendeu muito bem. Esse foi o ponto de partida para a coleção de primavera 2021; agradecer a minha comunidade por basicamente salvar a marca de encerrar as atividades. Eles realmente nos inspiraram a seguir fortes.”

Não é preciso mencionar novamente o quanto a maturidade dessa marca de três anos e meio impressiona. Ludovic possui o combo completo: identidade, assinaturas clássicas, designs potentes, talento e uma comunidade engajada. O que o aguarda no futuro? Uma colaboração com o PornHub, a maior plataforma de filmes pornôs gratuitos do mundo e que possui uma audiência diária de 22 milhões de pessoas. 

Se sexo foi o tema que mais apareceu na última semana de moda e é algo intrínseco no DNA da marca, não há a menor dúvida de que a coleção será mais um sucesso da label. Esse é, definitivamente, o match perfeito.

Por Trás do DNA: Mayari Jubini

Natural do Espírito Santo, a estilista Mayari Jubini de 26 anos vem conquistando o Brasil — e o mundo — ao vestir grandes nomes da música brasileira: entre seus clientes estão Anitta, Luiza Sonza e Pabllo Vittar.

Ainda em seu estado natal graduou-se em moda, apesar da falta de apoio (tanto financeiro quanto social) enquanto mulher periférica. Pouco tempo depois conquistou a pós-graduação em Negócios e Marketing de Moda na famosa Faculdade Santa Marcelina, e é só então que nasce sua marca, Artemisi Gallery, criada como um trabalho de conclusão de curso.

Queridinha das principais estrelas do país, Mayari vem acumulando seguidores e fãs em suas redes sociais por sua técnica de criação fora da curva. Apesar da pouca idade, ela se mostra o necessário para o mercado da moda atual: uma lufada de ar fresco, fiel a suas origens e princípios mesmo após todas as adversidades pelas quais passou. Conversamos com a designer para entender um pouco melhor sobre seu “DNA”.

Imagem: [Reprodução/Instagram]

A estilista

Nascida em Cariacica, município localizado no Espírito Santo, a trajetória de Jubini na moda começa muito antes de suas formações acadêmicas: desde criança já demonstrava uma curiosidade e forte veia artística, com inclinações para artes plásticas, literatura e filmes. 

A designer conta em entrevista para a Frenezi que sempre teve um lado criativo, “Desde muito nova tive um contato com a arte que não veio da minha família ou de alguém que me apresentou”, a mãe de Mayari era dona de casa e seu pai cortador. Ela conta que acabou conhecendo a literatura e foi tocada pela mesma. Isso a motivou a buscar mais e a aproximou de outras áreas como o cinema, todos que serviram de inspiração para o seu trabalho.

Ainda na adolescência, Mayari trabalhou em uma loja de roupas e lá criou peças para o catálogo — esse seria apenas o início de uma brilhante carreira no ramo. Após se formar, com melhores oportunidades e crescimento profissional em mente, Jubini mudou-se para São Paulo e iniciou uma pós em negócios da moda na Faculdade Santa Marcelina.

E não foi sem desafios: não conhecia ninguém, não tinha emprego garantido e nem investimento, apenas a vontade e certeza de que algum dia alcançaria seu sonho. “O mercado da moda ainda é muito elitista e senti isso claramente no início. Tem muito preconceito, a moda ainda é segregadora e quem tem voz dentro dela é quem tem recursos financeiros”, conta sobre sua chegada na cidade. Pouco tempo após sua mudança conseguiu o primeiro emprego na capital paulista: uma vaga no renomado ateliê Paulo Dolce.

“Se você estiver vestindo Prada, grandes marcas caras, com certeza terá um tratamento diferente. Eu percebi isso e […] não queria passar por um papel e fingir ser outra pessoa: queria conseguir a voz sendo quem eu sou e falando da minha história, assim como consegui. […] Tem uma coisa que te faz ter credibilidade independentemente do lugar de onde você veio: os resultados.”

A marca

O DNA de Mayari é moderno, cosmopolita e acima de tudo, livre. Sua marca não segue caminhos pré-estabelecidos por antecedentes da indústria, deixando livre o espaço para que a imaginação da artista possa correr. Visão, sensibilidade, estética punk, elementos 3D, vinil e recortes se misturam para criar peças dificilmente imagináveis e pouco convencionais, mas que surpreendem pela excelência na técnica.

Nascida como um projeto de TCC, Mayari se refere com amor ao processo de abertura da Artemisi em 2019 como a melhor coisa que já fez. A necessidade de fazer todo o trabalho sozinha pelo alto custo para criar uma marca e pouquíssimos recursos a disposição foi a maior das dificuldades. . A designer explica que o processo exigiu meses de reclusão, foco e dedicação total: “Já tinha esse plano fazia tempo, mas na hora de colocar em ação foram meses sem sair socialmente, só trabalhando, sem gastar dinheiro pois tinha que juntar e não podia usar com nada. Eu tinha que saber desenvolver tudo, estava criando ela [marca] sozinha.”, ela conta que precisava saber fazer tudo por conta própria, não só do lado criativo como também do administrativo, “Precisei entender a questão financeira, tive que estudar muito”.

A marca tem ganhado força após vestir personalidades que se interessam por seu diferencial, sendo as peças utilizadas principalmente em trabalhos conceituais como clipes ou ensaios fotográficos. 

Como contou em entrevista, o crescimento meteórico de seus modelos foi inesperado e aconteceu de forma rápida quando um stylist encontrou o portfólio da grife. “Foi maravilhoso ver o reconhecimento vindo das equipes de grandes artistas. O retorno do público também foi incrível, por ele vi que a marca foi ficando mais consolidada a cada novo trabalho.”. Falando também sobre seu processo criativo, ela conta que é um movimento constante de refletir sobre elementos que estão em sua vida.

Pabllo Vittar, Ludmilla, Anitta e Luiza Sonza em looks exclusivos criados pela Artemisi Gallery. Imagens: [Divulgação]

Todas as peças são pensadas e desenhadas unicamente por Jubini, e depois são produzidas por uma equipe no ateliê da Artemisi. É nesse momento que Mayari traduz suas visões de mundo e inspirações (que segundo ela mesma não vem da moda geralmente, mas sim da arte, cinema e literatura) em criações jovens, ousadas, que desafiam a questionar a tradicional forma de se fazer moda. 

“Gosto muito do que está à frente do seu tempo, mas sem essa ideia batida de futurismo na moda. Penso em como criar algo avançado. Sensibilizar nosso olhar em diversos ramos da arte faz com que consigamos ir além”.

Por trás do DNA: Charles de Vilmorin

O estilista francês Charles de Vilmorin, recém graduando da notória La Chambre Syndicale de la Couture Parisienne, foi indicado para ocupar o cargo de diretor criativo da maison Rochas no início deste ano. 

É especulado que a escolha foi, em parte, por conta de sua herança. O jovem é sobrinho-neto de Louise de Vilmorin — romancista, escreveu Madame de… (1951), livro que foi adaptado para as telonas em 1953 com o filme Desejos Proibidos (Madame de… em francês) de Max Ophüls; poetisa e jornalista francesa; herdeira da empresa de agricultura Vilmorin, fundada há mais de 200 anos. Louise era amiga de Hélène Rochas, esposa e grande musa do couturier Marcel Rochas — fundador da casa. No entanto, segundo o Financial Times, tal ligação era desconhecida até então.

Em entrevista ao jornal, o estilista fala sobre a sua herança artística passada por meio da sua família — sua mãe trabalha como professora de arte — e nega que foi indicado para a posição na Rochas por conta das ligações de Louise de Vilmorin com Hélène Rochas.

Ao invés disso, o designer acredita que a escolha tenha se dado por conta da sua ousadia, criatividade e a coragem de experimentar coisas arriscadas ainda seguindo as normas e tradições da alta costura francesa.

Charles de Vilmorin para Rochas. [Imagem: Charles de Vilmorin/ Reprodução Instagram]

Logo quando foi apontado para o cargo, Vilmorin contou à Vogue que a sua relação com a marca começou ainda qundo pequeno. Na infância, a maison estava presente em sua vida no formato de roupas e perfumes. Em fevereiro, o designer afirmou que a via como um símbolo de pureza e elegância, e que planejava unir o legado de cores e criatividade com o seu próprio toque.

Charles de Vilmorin apresenta a jovial esperança e ansiedade para o futuro. Em entrevista para a Fédération de la Haute Couture et de la Mode, fala sobre o significado e importância do futuro para a indústria: “É importante usar o passado, viver o presente e pensar sobre o futuro. É o papel de um designer pensar sobre o futuro”. Tal esperança é refletida no seu “DNA”.

Ao fazer um mergulho em seu instagram, é possível notar sua assinatura artística de forma prepotente. Seu feed é coberto por desenhos (que lembram os utilizados em seus designs), cores vibrantes no formato de fotografia, arte ou inspiração. Já pelas redes sociais, percebe-se que Charles de Vilmorin é — no sentido mais nú e cru da palavra — um artista.

Charles de Vilmorin: a marca

Ilustrações por Charles de Vilmorin. [Imagens: Charles de Vilmorin/ Reprodução Instagram]

O DNA de Vilmorin é vibrante, colorido, artístico e humano. Com elementos do Cubismo, Pop Art e até mesmo do Modernismo; o estilista cobre suas obras com verdadeiros elementos artísticos muitas vezes negligenciados pelo público geral quando se fala de moda.

A maison Charles de Vilmorin foi fundada em 2020, bem no meio da pandemia do COVID-19. Com o papel do estilista na Rochas, sua marca terá o propósito de se basear em Haute Couture — mais uma vez reforçando o lado artístico de seu criador — com pequenas cápsulas de pronto-a-vestir de tempos em tempos. A primeira coleção lançada foi a de Outono/Inverno 2020.

Segundo o próprio criador, a mulher de Charles de Vilmorin é ”um pouco tímida, um pouco trash. Ela não sabe para onde quer ir mas vai. Ela é tímida e um pouco… Desajeitada”, conta ao Financial Times.

As estrelas do momento foram as jaquetas puffer de poliéster impermeável super coloridas que relembravam uma silhueta dos anos de 1980 com ombreiras super marcadas. Todas as peças são feitas a mão. A coleção de lançamento foi um sucesso, com suas criações usadas em editoriais por grandes revistas como Numéro China.

Desde o início, o designer apresenta sua visão extremamente criativa de forma ousada e direta. A identidade do que será a maison Charles de Vilmorin se deixou clara desde o princípio: cortes ousados e grandiosos, elementos artísticos (seja em cores, texturas ou cortes) e o ponto humano — todos os ítens são feitos a mão por um time pequeno de pessoas.

Mesmo com pouco tempo no mercado, o estilista foi convidado pela Fédération de La Haute Couture et de la Mode para participar da Semana de Alta Costura.

Ele traduziu sua visão criativa repleta de cores, formas e arte para o couture de forma extremamente natural. Para a coleção, Vilmorin pintou todos os tecidos à mão antes de serem costurados em suas formas finais. Tal técnica pode ser notada ao se aproximar das fotografias da coleção. As imperfeições, ou melhor, detalhes de uma tela pintada a mão são evidentes. A falta de simetria e pequenas manchas não contam como defeitos para a visão artística e proposta apresentada. O designer afirma que tira inspiração do familiar — de seus amigos. As linhas e traços menos que perfeitos passam a impressão do conhecido, confortável. O humano que se torna belo por ser único. 

A técnica demorada e delicada de Vilmorin está em tudo da coleção. As cores vibrantes e chamativas são combinadas com silhuetas igualmente espalhafatosas e dramáticas. Charles busca também inspiração na moda dos anos de 1960 com silhuetas familiares. Em uma coleção, Vilmorin carrega a mensagem mais constante em sua geração, a geração Z: a necessidade de encontrar beleza em tempos caóticos, ou ao menos esperar pelo belo e brilhante na linha de chegada. No fashion film, os modelos (amigos de Charles) são apresentados como verdadeiras obras de arte em movimento.

No início deste ano, o estilista apresentou sua terceira coleção — segunda de alta costura. Esta, no entanto, veio como uma grande surpresa por ter um enorme contraste com suas coleções passadas. Em uma coleção inteiramente preta, Charles de Vilmorin descreve a surpresa como apenas um mood.

As peças parecem terem sido tomadas por corvos e imaginadas pela mente de Tim Burton. O estilista, no entanto, mantém o caráter artístico com o uso de penas, cortes complicados (que por vezes lembram tentáculos) e grandes brincos dourados. A coleção de Outono/Inverno Couture parece, em sua maioria, extremamente teatral, com silhuetas pomposas e gigantes. O mood aqui se apresenta como oposto da coleção anterior, uma desesperança e medo do que o futuro aguarda.

Depois dela, o designer volta para sua visão colorida com a coleção cápsula exclusiva para 24 Sèvres — portal de compras de luxo online, pertencente ao conglomerado LVMH.

A perspectiva econômica por trás da indicação ao cargo na Rochas

A introdução de um jovem designer é, mais do que tudo, a tentativa de alcançar um novo público no mercado. As peças da coleção de Primavera/Verão 2022 serão vendidas por um preço mais “acessível” (com a variação de preços para vestidos entre €700 e €3000).

Hoje, a Inter Parfums é a proprietária da maison. O mercado de perfumaria gera para a marca cerca de €40 milhões — número que cresceu desde a compra em 2015. Segundo Philippe Benacin, CEO da Inter Parfums, o crescimento é creditado à introdução de perfumes voltados para o público jovem como Eau de Rochas, Mademoiselle de Rochas e Rochas Girl. 

A licença de todas as coisas fashion, no entanto, são administradas pelo grupo HIM. Esse mercado gera para a casa francesa cerca de €8 milhões, e a proposta é alcançar €20 milhões nos próximos três anos, a fim de equilibrar com o mercado de perfumes.

Para alcançar o objetivo, a marca planeja expandir seu espectro de vendas e apostar também no setor de sapatos e acessórios — segmento da indústria da moda que mais movimenta o mercado.

Rochas de Charles de Vilmorin

Fotos da nova visão artística da Rochas, divulgadas no instagram oficial da marca. [Montagem por Marina Bittencourt]

Para entender a nova Rochas é preciso entender a antiga. Marcel Rochas tinha apenas 23 anos quando fundou a maison, somente um ano mais novo que Charles de Vilmorin quando assumiu a direção criativa da casa. Na época, Rochas foi considerado o estilista da juventude. Indo contrário à grandes personalidades da época como Coco Chanel, ele apresentava silhuetas realmente revolucionárias para o tempo: vestidos bem estruturados com mangas bufantes, saias robustas e arquitetura impecável em suas criações.

Responsável pela criação de saias com bolsos e do casaco ⅔, Rochas tirava suas inspirações do feminino e da emancipação feminina. Suas roupas eram idealizadas com o corpo da mulher em mente. No pós Segunda Guerra, o estilista usou e abusou de peças e silhuetas que buscavam a liberdade e independência feminina. O designer faleceu em 1955 aos 53 anos.

Desde então, a maison passou por diversos diretores criativos. Obteve um breve retorno à glória com a direção criativa de Olivier Theyskens de 2003 até 2006. Na sua coleção de estreia e ao longo do seu tempo na marca, Theyskens apresentou uma visão um tanto parecida com a atual de Vilmorin, isto é, silhuetas grandiosas, dramáticas e inovadoras. Uma ousadia que remete ao fundador.

A Rochas de Vilmorin é, além de tudo, uma tentativa de rejuvenescimento da marca. Mas, também, é um retorno para as bases criativas e espalhafatosas da maison.

O debut do designer na casa francesa ocorreu com a coleção Resort 2022. Embora mais amenas, as silhuetas bufantes e peças estampadas já estavam presentes na chegada do novo diretor criativo. A mudança entre a Rochas de um ano atrás e a atual é gritante. A maison abandonou cortes simples e bem estruturados por silhuetas chamativas e arriscadas. Deixou os tons pastéis e neutros por cores chamativas e estampas psicodélicas.

É jovial, livre, despojada, chamativa, artística e ousada. O designer se preocupa em mesclar o passado e o presente, assim como o seu DNA e a herança da casa. Executa, com certo sucesso, o equilíbrio do jovem com o sofisticado.

Para a coleção de Primavera/Verão 2022 apresentada na Semana de Moda de Paris, Charles de Vilmorin trabalha em suas silhuetas espalhafatosas e complicadas, que são elevadas ao extremo com a escolha de estampas e tecidos igualmente dramáticos. Vilmorin quebra os padrões da marca e traz para a passarela estampas intrigantes com pinceladas do gótico e do punk. A abordagem jovial e chamativa carrega com peso o nome e proposta do novo diretor criativo.

O designer se preocupa com os detalhes. Exibe vestidos, calças e blusas trabalhadas com desenhos e recortes na passarela. Mesmo em looks sem toda a grandiosidade, Vilmorin se preocupa em deixar sua assinatura por meio dos sapatos — botas com franjas, metalizadas ou desenhadas em formato de chamas; tamancos metalizados; sapatos de salto alto cheios de cortes e cores —, brincos e outros acessórios.

O caminho traçado pelo estilista parece levar ao sucesso se conseguir manter e consolidar a identidade da casa. A coleção foi um primeiro gosto da nova era emergente.